22.11.06

A biometria e as identidades flutuantes


O Reino Unido introduziu no uso comum os novos passaportes biométricos, e um repórter do The Guardian conseguiu, em menos de 48 horas, aceder aos dados encriptados num desses documentos. Os novos passaportes biométricos também já começaram a ser emitidos aqui em Portugal, e a tecnologia será seguramente aplicada a outros tipos de cartões de identificação. Por isso, vale muito a pena estar a par desta história.

17.11.06

Diggin' - Bicaense 15.11.2006




Tuba, trompete, saxofone e uma bateria quase portátil encheram o ar de cores enquanto, lá fora, a chuva inundava a calçada. O guitarrista de blues, em fundo, permaneceu estático durante toda a actuação. O público (que aliás não era muito) antes pelo contrário. Dois "sets" para uma noite em cheio - apesar de não ser uma noite de enchente, mas de enxurrada.

Mizoguchi, 11.11.2006















«Os Amantes Crucificados». No escuro, ao fundo, em tarde de sábado. Até Fevereiro, há mais umas dezenas de filmes para rever na Gulbenkian.

13.11.06

Arte em carne, carne em arte


Sexta-feira, 10 de Novembro: era noite de São Martinho, mas era também noite da penúltima apresentação dos OPNI's - Objectos Performativos Não Identificados - que durante algumas semanas ocuparam diariamente as sessões noturnas no Espaço Karnart, uma autêntica ilha no centro de Lisboa.

Em cada dia, um OPNI diferente. Sexta-feira trouxe assim uma noite de convívio relativamente íntimo com «Mica Cardoso», uma «teatróloga do Ministério da Cultura», que se «especializou no trabalho da Karnart» e conduziu os circunstantes (de várias nacionalidades) numa visita ao espólio acumulado por aquele colectivo ao longo da sua existência: filmes, spots, fotografias, apontamentos, currículos, adereços, colaborações, dossiers de produção, contabilidades de produção - enfim, tudo aquilo que fora a menina dos olhos do «falecido Luís Castro». O qual «como toda a gente sabe, se suicidou no ano passado», dizia ainda a Mica.

Foi também mais uma oportunidade para divulgar o conceito de Perfinst criado pelo mesmo Luís Castro nos finais do último século: uma encruzilhada entre performance e instalação, na qual o corpo dos actores se objectifica enquanto os objectos instalados ganham, eles próprios, significações inauditas, uma outra espessura conceptual e mesmo uma certa «carne».

Ah, e foi servido um excelente chá! O que, além de simpático, é até generoso, se atentarmos nos meros 5 euros do ingresso.

Em suma, vale muito a pena estar atento(a) ao calendário da Karnart. A programação para 2007 será anunciada dentro em breve.

The Kills - ao vivo no Lux 05.11.2006





Um concerto à tarde - e ainda para mais em tarde de domingo - é um luxo inesperado; e sobretudo quando é apresentado como um «showcase» só para convidados. Assim se reuniram umas duas centenas de almas para assistirem à primeira apresentação em Lisboa (e possivelmente em Portugal) do duo britânico The Kills, que no entanto já haviam servido de tema à capa da Les Inrockuptibles em Maio de 2003 e à capa da Rock et Folk em Maio de 2005, entre muitas outras.

Trata-se de um dinâmico duo anglo-americano que, com pouco mais do que voz, guitarra e algumas pré-programações, constrói momentos musicais positivamente entusiasmantes. Ele chama-se Jamie Hince, mas hoje em dia é conhecido por «Hotel»; ela chama-se Alison Mosshart, mas prefere ser conhecida como «VV». Já foram fotografados por David Bailey, o que atesta bem que são eles hoje o hype. Ouvem-se neles ecos dos Young Marble Giants (aqui em versão ácida) e do ímpeto de PJ Harvey. Já houve, no entanto, quem chamasse «punk-blues» ao som que produzem. A referência ao punk não é despropositada, se tivermos em atenção alguns dos temas mais fulgurantes do seu repertório: «Fuck the People», e «No Wow» («There ain't no Wow now»). A referência ao blues também não. Na dúvida, podem consultar-se a discografia e as letras das canções aqui.

Citações avulsas a ter em conta: «We don't want to be in a scene. We want to be our own scene» (Hotel). «No-one's gonna know our plan. It's the only way to stay on top of things» (VV)

Explicação de um hiato

De Julho a Novembro vai um grande intervalo. Mas foi um Verão intenso, e particularmente ocupado com a finalização de Brava Dança. Voltemos agora ao fio dos dias.

23.7.06

Improvável, mas possível



Os New York Dolls são frequentemente apontados como um dos grupos que estiveram na origem do movimento punk. Publicaram o seu primeiro álbum em 1973, o segundo em 1974 - e o terceiro agora em 2006, ou seja 32 anos depois. Uma reportagem do New York Times conta a história. E Mick Jones, dos Clash, recorda como deixou crescer o cabelo «à Johnny Thunders» depois de os ter visto pela primeira vez na TV.

Robert Mapplethorpe




A propósito de uma retrospectiva do fotógrafo Robert Mapplethorpe (aqui num auto-retrato de 1985), que estará em exibição até 5 de Novembro na Scottish National Gallery of Modern Art, em Edimburgo, Peter Conrad, do Observer, viajou até Nova Iorque para conhecer o irmão, o advogado e o assistente do artista - que o retratam como uma espécie de demónio irrequieto e prepotente. Um perfil que o próprio provavelmente não desdenharia...

21.7.06

Contra o Dia?





Thomas Pynchon, o romancista que não dá entrevistas nem se deixa fotografar desde os idos da década de 1950, tem um novo livro. Intitula-se «Against the Day», e será publicado em Dezembro pela Penguin. No sítio internet da editora publicou-se uma irónica descrição da obra, que mais tarde foi retirada. Afinal, parece que tinha sido escrita pelo próprio autor.

20.7.06

Sobre a importância da verdade




«As pessoas providas de inteligência tendem a usá-la para demonstrar que as coisas são ao mesmo tempo verdadeiras e falsas, tentando então impôr tudo o que quiserem com o seu raciocínio arguto. Isto é um insulto à inteligência.

Nada do que se fizer terá qualquer efeito se não se usar a verdade»


in Yamamoto Tsunetomo, Hagakure (século XVIII)

Sobre a essência da música






«Após haver meditado longamente sobre a essência da música, recomendo a fruição desta arte como a mais requintada de todas. Nenhuma outra há que actue mais directamente, mais profundamente, porque nenhuma outra há que revele mais directamente e mais profundamente a verdadeira natureza do mundo. Escutar grandes e belas harmonias é como dar banho ao espírito: purifica-o de toda a impureza, de tudo o que é mau, mesquinho; eleva o homem e deixa-o em acordo com os mais nobres pensamentos de que ele fôr capaz, e ele sente então tudo o que vale, ou antes tudo o que ele poderia valer.»

Arthur Schopenhauer, Fragmentos Póstumos, 373 (Leipzig, 1864)

Inteligência eléctrica - 4




Como reduzir ou eliminar as emissões planetárias de carbono, conseguindo ao mesmo tempo gerar energia bastante para acomodar um crescimento anual de 3% na economia mundial?

O problema tem dimensões inauditas, e Marty Hoffert, professor de Física na Universidade de Nova Iorque, propõe que se recupere uma ideia avançada por Buckminster Fuller na década de 1970 : recorrer à engenharia e à tecnologia aerospacial para a construção de grandes espelhos fotovoltaicos que seriam colocados em órbita geostacionária de forma a captar a energia solar acima da atmosfera. E defende esta ideia em artigo publicado na Technology Review.

Ver também Inteligência eléctrica-3

Mundos Virtuais - 2




A nanotecnologia é uma das áreas de investigação que mais promessas de futuro oferece actualmente. Mas não está isenta de riscos - e, entre estes, avultam a sua possível toxicidade para os organismos e, claro, as hipóteses sempre plausíveis de contaminação da biosfera. O debate está em curso.

Entretanto, em Austin, a Universidade do Texas decidiu criar um novo centro de investigação dedicado à nanoelectrónica.

17.7.06

Do mundo como ser vivo







«É pois necessário aceitar como princípio que o universo é um vivente único, o qual compreende todos os seres vivos que lhe são interiores, e que possui uma alma única, a qual se estende em todas as suas partes... Existe pois uma simpatia entre todas as partes desse ser unificado; e ele é como um único ser vivo, no qual as respectivas partes estão próximas apesar da sua distância (...) As partes semelhantes, sem serem contíguas, e se bem que separadas entre si por partes diferentes, são semelhantemente afectadas devido à sua similitude; e é necessário que se transmita à distância um efeito que não é de origem contígua, porque num ser vivo existe uma finalidade única, e nenhuma parte está localmente tão separada que todavia não esteja próxima, em virtude da simpatia natural que unifica o ser vivo.» (IV, 4, 32)

«O mundo aqui de baixo não é verdadeiramente uno; é múltiplo, e de uma multiplicidade que resulta da divisão em partes distantes umas das outras, estranhas umas às outras. Não é somente a amizade que aí reina, mas a rivalidade derivada da dispersão na extensão, porque a carência necssariamente provoca a hostilidade recíproca. Cada parte, com efeito, não se basta a si mesma; para se conservar tem necessidade de outra, e assim se torna agressiva relativamente aquela de que tem necessidade para se conservar.» (III, 2, 2)

Plotino, Eneadas

Israel e o Líbano, segundo Noam Chomsky



Sintético e clarividente, Noam Chomsky traçou em breves palavras um retrato do que está a suceder no Líbano durante uma entrevista radiofónica com Amy Goodman para a estação norte-americana Democracy Now. A transcrição da conversa, bem como a gravação da mesma em formato Mp3, podem ser obtidas aqui.

Destaque: «As always, things have precedence, and you have to decide which was the inciting event. In my view, the inciting event in the present case, events, are those that I mentioned -- the constant intense repression; plenty of abductions; plenty of atrocities in Gaza; the steady takeover of the West Bank, which, in effect, if it continues, is just the murder of a nation, the end of Palestine; the abduction on June 24 of the two Gaza civilians; and then the reaction to the abduction of Corporal Shalit. And there's a difference, incidentally, between abduction of civilians and abduction of soldiers. Even international humanitarian law makes that distinction.»

Entretanto, durante a reunião do G8, em São Petersburgo, alguns microfones indiscretos captaram a conversa entre o presidente dos EUA e o primeiro-ministro britânico.

16.7.06

Fim de Semana


Estirado na areia, a olhar o azul,
ainda me treme o parvalhão do corpo,
do que houve que fazer para ganhar o nosso,
do que houve que esburgar para limpar o osso,
do que houve que descer para alcançar o céu,
já não digo esse de Vossa Reverência,
mas este onde estou, de azul e areia,
para onde, aos milhares, nos abalançamos,
como quem, às pressas, o corpo semeia.

Alexandre O'Neill (1969)

Wittgenstein explicado às criancinhas
















1.-Sentir presenças básicas: sentir acima e abaixo, à esquerda e à direita, à frente e atrás. Notar o Antes e o Depois, o Aqui e o Ali.

1.1.- E estar-se destacado no horizonte, erguido numa orientação vegetal - para a luz e o azul, escapando à treva e à terra. Sentir-se dirigido.

2.- Ver, como os animais. Numa direcção nova, que estabelece um paralelo aos pés, à lama. Igualmente sem fim - o término horizontal é o ponto imaginado para onde a visão me impele. Acolher o confronto com a outra direcção, o meu vértice, que me atrai.

2.1.- Observar a minúcia que obtenho a partir daquilo que é próximo. Coisas que identifico, coisas a que posso dar nomes. E nomes por onde as posso reconhecer. Como «cão», ou «árvore», ou «Ana», ou «Filosofia», ou «3/4», ou «Lisboa».

3.- É aqui que começo a pensar. Como utilizo eu um processo único para atribuir nomes tão semelhantes a coisas tão diferentes? E que são diferentes por tão inumeráveis razões (Quais serão? Poderei enumerá-las? Mas para que serve o número?).

4.- Pensando melhor, que posso fazer com os nomes? Falar contigo, se estiver disposto a isso (é uma forma de gastar o tempo), e dizer-te: «Gosto muito de ti», ou «Os polvos classificam-se na categoria dos octópodes», ou «Nunca mais chega, esse autocarro», ou então «Vê se te evaporas». Desde que fales a mesma linguagem.

4.1.- Senão, reservarei os nomes para uma qualquer utilização futura; se os escrever eles ficarão guardados, e o que significam. É um modo de alongar a memória - e uma forma de iludir o tempo que continua a passar. Quero dizer: uma forma de o negar: e ainda que eu não recorde, alguém recordará.

5.- Pensando melhor ainda: que faço eu quando utilizo os nomes que criei? Quero dizer, o que é que eu estou a fazer, quando faço isso? E o que é que estou a fazer, quando junto os nomes em frases? Quero dizer: de onde trago os nomes que só aparecem nas frases (se digo que «isto é aquilo», por exemplo)? Que querem eles dizer? Que quero eu dizer? Quero dizer o que penso? Aquilo que penso será aquilo que digo, os nomes? Será que penso com os nomes, quando julgo estar a pensar em meu nome?

6.- Se existe uma ética nisto, não vejo qual seja. Certas coisas não se podem dizer, têm de mostrar-se.

6.1.- Às vezes, imagino-me por detrás de um véu que transparece entre mim e o mundo. É um véu onde se encontram todos os nomes, sustentados por débeis fios que os ligam a todas as coisas; e mantidos entre si por fios ainda mais débeis. Na minha imaginação, são todos esses fios que acabam por tecer o véu, véu que me separa das coisas, coisas (o que eu vejo e quero e toco e sinto) que estão sempre para além do véu, o que me causa uma certa ânsia.

6.2.- Em suma, julgo que apenas devemos dar importância às coisas que são realmente importantes. Isto parece-me lógico. O resto não vale a pena - só motiva um esforço vazio e tonto, que sempre traz grandes confusões e sarilhos. Porque, mesmo quando nos expressamos na mesma linguagem, nem sempre falamos a mesma língua. Nem sempre partilhamos um só entendimento acerca de cada estado das coisas. E a discussão é, assim, inevitável. Parece-me mais saudável estar prevenido - ser claro em tudo na linguagem. Por higiene. Para evitar embaraços. Como o flúor afasta os germes, assim eu afastarei as expressões confusas.

6.2.1.- Por outro lado, devo ser mais construtivo e optimista. Devo encarar isto como um jogo: falamos a mesma linguagem, mas o que fazemos com ela pode não ser concordante. E por vezes, se calhar, não pode mesmo ser concordante. Podemos dar por nós, então, a meio de uma conversa de surdos; num jogo onde cada um altera a regra a cada instante. Sem possibilidade de uma saída conjunta, sem um final feliz. Uma conversa que se pode tornar interminável. E um jogo que seria o passatempo total.

6.2.2.- As combinações possíveis! O número! Tempo não me falta, para o cálculo. Se tivesse vontade, podia procurar a fórmula ideal para o jogo, a fórmula ideal para mim, o lance que me permitiria sempre a certeza da jogada porque certeza é coisa que nunca tive (conheço o nome).

6.2.3.- Ressalva. Que me queimo se puser a mão no fogo: eis o que é certeza.

6.3.- Exceptuando o que é matemático (o que se repete), sempre que falo e afirmo, o que quero dizer é que sinto que tem que ser assim. Não me tomo por um iluminado, confesso até um certo pendor para o oculto. Mas a minha tendência vertical diz-me que não e a minha tendência animal diz-me que sim. Cruzado em duas direcções, não me decido entre o meu vértice e o meu vórtice, o céu e a lama. Não sei ser herói, nem mártir, nem santo, nem herético. São assuntos sobre os quais não me pronuncio, porque suponho que aquilo de que se não pode falar deve calar-se.

7.- No fundo, além de ti não existem mistérios: somente problemas indecifráveis. Se estiver bem disposto ao jogo, e tu, podemos desenvolver um outro estado para as coisas. Podemos conversar, passar o tempo. Enfim, ter relações.

© Jorge P. Pires
(publicado originalmente no semanário Blitz nº 244, 4 de Julho de 1989)

13.7.06

Hakim Bey: Boicotai a Cultura Chui


«(...) Propomos uma exegese hermenêutica esotérica da palavra de ordem surrealista «Mort aux vaches!». Cremos que ela se refere não às mortes de chuis individuais («vacas», no calão desse período) – mera fantasia esquerdista de vingança – mesquinha reacção sadista – mas antes à morte da image do flic, do controlo íntimo e das suas miríades de reflexos no Lugar Sem Lugar dos media – o «quarto cinzento», como lhe chama Burroughs. A auto-censura, o temor dos seus próprios desejos, a «consciência» como voz interiorizada da autoridade-consenso. Assassinar estas «forças de segurança» equivaleria deveras à libertação de dilúvios de energia libidinal, mas não ao violento amok previsto na teoria da Lei e da Ordem. A «ultrapassagem» nitzscheana fornece princípios de organização ao espírito livre (bem como à sociedade anarquista, pelo menos em teoria). Na personalidade do estado policiário, a energia libidinal é retida e depois canalizada para a auto-repressão; qualquer ameaça ao Controlo resulta em espasmos de violência. Na personalidade de livre espírito, a energia flui sem peias, e por conseguinte de forma turbulenta mas gentil – o seu caos encontra o seu atractor estranho, permitindo o surgimento de novas ordens espontâneas.

Neste sentido, portanto, apelamos a um boicote à imagem do Chui e a uma moratória sobre a sua produção em arte. Neste sentido...

MORT AUX VACHES!»


in Zona Autónoma Temporária: Lisboa, trad. Jorge P. Pires, Frenesi, 2000

A Inteligência Artificial tem 50 anos



Em Julho de 1956, correspondendo a um convite de John McCarthy, professor do departamento de Matemática do Dartmouth College, em Hanover (New Hampshire, EUA), diversos investigadores reuniram-se naquela escola num seminário de investigação em «Inteligência Artificial» - termo inventado pelo próprio McCarthy.

Esta semana, em comemoração do meio século de vida desta noção que se tornou cada vez mais actual, o Dartmouth College acolhe uma reedição do evento - tendo agora por tema «Os Próximos 50 anos da IA».

Estará certamente em destaque a presença dos quatro sobreviventes do grupo original, entre os quais John McCarthy e Marvin Minsky (na foto), que é hoje entrevistado na Technology Review.

A entrevista é significativa sob vários aspectos. Por exemplo, Minsky aponta vários defeitos no modo como a IA evoluiu e sublinha o actual défice de investigação em torno da noção de Senso Comum. Além disso, levanta o véu sobre o seu próximo livro - The Emotion Machine: Commonsense Thinking, Artificial Intelligence, and the Future of the Human Mind, que será publicado em Novembro pela Simon & Schuster.

Uma primeira versão do livro estava já disponível na Internet, a partir da página pessoal de Marvin Minsky no MIT, na qual, aliás, se encontrarão diversos outros textos do autor, que servem de agradável alternativa à crónica que EPC hoje assina no Público.

11.7.06

Syd Barrett 1946-2006












Faleceu hoje o fundador dos Pink Floyd, que deixara de tocar com a banda em 1968.

Uma reportagem de Tim Willis publicada em 2002 no The Observer explica muito bem porquê. Também é possível consultar o sítio dos fãs dos Pink Floyd, ou o dos fãs de Syd Barrett.

Inteligência eléctrica - 3





O governo escocês apresentou ontem um plano radical: de futuro, todos os novos empreendimentos imobiliários terão obrigatoriamente de estar aptos a produzir electricidade. O The Scotsman chama a esta iniciativa a Revolução Verde.


Ver também: Inteligência eléctrica - 2

Votos filosóficos







Segundo uma notícia da LUSA, que vi reproduzida no Diário Digital, um dos principais votos de José Saramago para este milénio é o de que «todos nos transformemos em filósofos, porque filosofar significa pensar, reflectir e duvidar - palavras que talvez pertençam à categoria das caducas, daquelas que já não se usam». Ou antes pelo contrário. Não seria mau.

9.7.06

15 minutos com Manuel De Landa

Já tinha ouvido falar do mexicano/novaiorquino Manuel De Landa quando o vi em público pela primeira vez, em Maio de 2000, em Berlim, durante as conferências Monomedia - um encontro internacional em que se discutiram diversos desafios culturais suscitados pelos novos media, com participantes tão pertinentes como Michael Goldhaber (EUA), Bert Mulder (Hol), Richard Barbrook (GB) e o ultradiscreto, mas sempre inconfundível, Brian Eno.

De Landa, um reconhecido deleuziano, destacou-se pela ferocidade e magnetismo da sua intervenção, abandonando a cadeira, deambulando de um lado para o outro no palco enquanto procurava satisfazer o tópico em análise - a «Mudança de Valores».

Foi depois disso que comecei a lê-lo, pela ordem em que publicara os seus livros: War in the Age of Intelligent Machines (1991), A Thousand Years of Non-Linear History (1997), e Intensive Science and Virtual Philosophy (2002). Falta-me o tempo, e os meios, para aceder aos seus filmes experimentais dos anos 70.

Em 28 de Setembro de 2002, De Landa esteve presente num outro colóquio, intitulado «Sob Vigilância», que foi realizado na Biblioteca Municipal de Oeiras, creio que por iniciativa (ou influência) de António Saraiva-Bakali. Foi aí que recolhi estas imagens de um autor afinal mais sereno do que eu o imaginara, mas não menos significativo; e que se mostrou bastante afável, durante o posterior convívio social propiciado pelo evento.

Creio que algumas das observações que ele tece neste breve excerto - designadamente as que se referem à actual substituição do Direito pelo Código - ganham bastante com a leitura das obras de Lawrence Lessig . Como complemento ao video, sugiro ainda a leitura desta entrevista com Manuel De Landa, desta outra entrevista, ou deste breve perfil.


7.7.06

A viúva de Mozart, e outras histórias



Constanze Weber Mozart era (é?) aquela senhora de touca branca, que está ali do lado esquerdo e, na sua edição de hoje o The Guardian conta como esta inacreditável fotografia, feita em 1840, pode agora ser recuperada - através de uma cópia, uma vez que o daguerreótipo original já se terá desfeito há muito.

Na incontornável secção de Artes do The Guardian, uma outra história de flagrante importância: Robert Thicknesse conseguiu finalmente reconstituir um coro grego , nos seus aspectos cénicos, musicais e prosódicos. O resultado será emitido pela Radio 4 na próxima terça, dia 11.

Em Liverpool, que se prepara para ser Capital Europeia da Cultura em 2008, demitiu-se o director artístico do projecto.

Em Nova Iorque, onde continua em exibição no Museu de Arte Moderna, até 11 de Setembro, a exposição dedicada ao movimento Dada, a galeria Francis M. Naumann Fine Art decidiu promover, em complemento, mas só até 28 de Julho, uma outra exposição sobre as vidas e obras das mulheres Dada que habitaram aquela cidade na primeira metade do século XX: Beatrice Wood, Clara Tice, Florine Stettheimer, Mina Loy, Katherine S. Dreier, e a escandalosa Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven. O New York Times fala da exposição e traça um breve perfil destas protagonistas (quase) desconhecidas.

Numa outra página, também fala do que está a acontecer na Feira de Arte de Basileia.

6.7.06

Danças Ocultas em ensaio (video 09.02.2003)

Imagens recolhidas durante o trabalho de campo para a preparação de Alento (ed. Assírio e Alvim, 2003). Às 00h10, na Casa do Rio, em Águeda, numa noite de muito frio e pouca luz. Duarte Belo chegaria na manhã seguinte para uma sessão fotográfica com os músicos dos Danças Ocultas: da esquerda para a direita, Artur Fernandes, Filipe Ricardo, Filipe Cal e Francisco Miguel Silva.

4.7.06

Inteligência eléctrica - 2



Na foto, o T-Zero, protótipo californiano de veículo eléctrico que pode competir com Corvettes e Ferraris: tem 200 cavalos de potência e demora menos de 4 segundos a chegar dos 0 aos 100 kms/h.

A notícia vem na Forbes, mas não é um exclusivo. Na costa leste dos EUA está ao rubro a corrida entre construtores independentes para conseguirem fabricar automóveis que sejam simultaneamente potentes e não-poluentes, e que tenham um preço devidamente concorrencial.

Entre os financiadores de um outro projecto - o da Tesla Motors - contam-se os fundadores do Google, segundo conta a Technology Review.

Ver também: Inteligência eléctrica, Inteligência eléctrica - o antídoto.

Mundos virtuais - 1






Algo de estranho aconteceu durante este fim de semana a muitas centenas de subscritores da mailing-list da Ananana - uma muita especializada loja de discos lisboeta - e, aparentemente, também a muitas centenas de não-subscritores: uma desconfiguração, ou um vírus, como muitos temeram, fez com que os endereços e as mensagens de muitos fossem parar às caixas de correio de muitos outros. O que, inevitavelmente, cresceu de forma exponencial com a multiplicação dos protestos e dos pedidos de remoção da lista.

Entre sábado e domingo houve portanto troca e partilha de choros, convulsões, insultos, ameaças e, felizmente, muito humor.

Houve respostas automáticas que foram automaticamente redistribuídas por toda esta comunidade improvisada e imprevista.

Houve reconhecimentos: também estás aqui? (E quem se admirasse por encontrar ali, a protestar, o Abel Barros Baptista)

Houve quem aproveitasse para disseminar poesia.

Houve quem aproveitasse para disseminar pornografia.

Houve quem registasse o evento num blog (antes de mim).

Houve quem pedisse para não ser removido da lista.

Houve até quem, do lado de lá do Atlântico, pasmasse com o que estava acontecendo:
Pessoal,
não estou entendendo nada do que está acontecendo.
primeiro um vírus louco. depois pessoas felizes e contentes a trocar e-mails.
quando vejo, tudo isso vem de Ananana.
bom. de qualquer forma estou grato por estar aqui. aprecio muito as resenhas. e, infelizmente, não tenho como estar fisicamente com vocês, pois estou na América Latina, Brasil. Mas continuem a falar que eu estou aqui a observar.
beijos grandes,
- João Mognon.


Houve quem propusesse uma informal jantarada no Bairro Alto, com factura a cargo da Ananana. Ou um flash meeting.

No fim da aventura - no fim do fim de semana - a Ananana resolveu o problema; mas por essa altura já eram muitas as vozes desta comunidade espontânea que reclamavam a criação de um forum. Permanente?

Godard: exposto







Quando, em 1900, Claude Monet mostrou ao seu amigo Edgar Degas a última novidade do seu domicílio - um telefone - este reagiu placidamente, dizendo: «Já percebi como funciona. Aquilo toca e você tem de se levantar».

Desde a semana passada, a frase está afixada numa parede do segundo piso do Centro Pompidou, em Paris, e integra uma das instalações que compõem a mostra «Voyages en utopie: Jean-Luc Godard 1946-2006», em curso até 14 de Agosto; a qual acompanha a exibição, no piso inferior, de uma retrospectiva integral do conhecido mestre - 140 filmes.

Uma notícia na The Economist faz alusão a desorientações criativas e dissensões corporativas que terão motivado uma profunda alteração dos planos originais para a exposição/instalação - cujo tema inicial seria uma «Arqueologia do Cinema», em provável circuito com o seu notável «Histoire(s) du cinéma» (1988-1998).

É porém no sítio do Centro Pompidou que se pode encontrar a programação, bem como informações mais detalhadas, e inevitáveis curiosidades: por exemplo, na Galeria Brancusi do mesmo centro está patente, até Setembro, uma exposição de James Turrell.

1.7.06

O grotesco: Francis Bacon vs. Big Brother








Ainda no The Guardian, e a propósito da exposição, na Galeria Gagosian, em Londres, dos trípticos de Francis Bacon (aqui ao lado num dos seus auto-retratos), Gordon Burn publica um interessantíssimo artigo, intitulado The Human Zoo, onde a aproximação radical à natureza humana levada a cabo por este pintor é posta em paralelo com o programa televisivo Big Brother, que o Channel 4 serve actualmente ao público britânico, e no qual até já esteve envolvido um conhecido político local - provavelmente seguindo o emérito exemplo do nosso ex-autarca de Marco de Canaveses.

Lawrence Ferlinghetti tem 87 anos...






... e foi entrevistado por Nicholas Wroe para o The Guardian. O editor de Allen Ginsberg, de Pasolini e de tantos outros, conta que quando chegou a San Francisco, em 1951, não usava chapéu, mas sim boina. E que, não apenas por isso, mas também por isso, não pensa em si mesmo como o primeiro dos Beats, mas antes como o último dos boémios.

Vigilância e controlo (1)



Eis o que poderá ser uma das maiores glórias do actual Campeonato do Mundo de Futebol: ontem, após a conclusão do jogo por penalties, os jogadores da Alemanha e da Argentina envolveram-se numa violenta confrontação no centro do relvado.

As imagens, ao que tudo indica, foram censuradas: não surgiram na transmissão televisiva, não surgiram nos resumos do jogo e, como não apareceram na televisão, também não tiveram interesse algum para os nossos empenhados «comentaristas».

Portanto, a partir daqui de Lisboa, é como se nada tivesse acontecido.

Felizmente, pode ler-se o relato que o The Guardian fez do sucedido. E também o relato do Der Spiegel (em inglês), que inclui até uma pequena galeria fotográfica.

29.6.06

A frescura no rosto

Regresso aos Açores - 2

Lema inscrito sobre o balcão de uma simpática loja de fotografia em Ponta Delgada:

«Tudo o que não for excelente é inaceitável»

22.6.06

Em busca do robô desconhecido










A Microsoft apresentou esta semana o seu novo Robotics Studio, que já está disponível para descarga. Começam a perceber-se as novas orientações estratégicas da empresa de Bill Gates para os próximos anos.

20.6.06

Chegou o comentador de futebol robótico!





A Technology Review publicou hoje um interessantíssimo artigo sobre uma das mais recentes aventuras no campo da robótica - já não o robô que sabe jogar futebol (para isso até já há um campeonato próprio), mas o robô bípede e poliglota, dotado de percepção tridimensional, capaz de reconhecer rostos e cores, e, o que é mais, habilitado a comentar uma partida enquanto ela decorre.

A bem dizer, não se trata apenas de um robô, mas de dois, chamados Ami e Sango, que foram apresentados publicamente na semana passada, em Bremen, durante a Robo Cup 2006 e conseguem até coordenar as suas acções ao longo do jogo. Foram construídos pela Sony e programados por uma equipa de cientistas computacionais da Carnegie Mellon University, em Pittsburgh.

Embora o artigo seja omisso neste ponto, é mais que provável que Ami e Sango saibam falar português - ou não fosse a equipa da Carnegie Mellon liderada pela Professora Manuela Veloso, cuja carreira docente se iniciou aqui em Lisboa, no Instituto Superior Técnico.

Ah, quanto aos resultados finais da Robo Cup 2006, talvez seja interessante notar que duas equipas portuguesas se destacaram: a FC Portugal conquistou o primeiro lugar na categoria de Simulação Tridimensional; e a 5dpo ficou em segundo na categoria de robôs de pequena dimensão. Se os humanos se portarem como os robôs, temos taça...

O melhor romance (americano) dos últimos 25 anos



«Beloved», de Toni Morrison (na foto), foi eleito como o melhor romance norte-americano dos últimos 25 anos, por votação de cerca de duzentos escritores, críticos e editores, que foram arregimentados para tal tarefa no início deste ano pelo editor da secção de Livros do New York Times, Sam Tanenhaus.

Os resultados da votação são curiosos a vários títulos (entre eles o de permitir decifrar qual é o actual cânone da literatura made in USA), e guardam diversas surpresas. Por exemplo: Philip Roth é o autor com mais livros citados, na qualidade de pretendentes ao título. O qual, no entanto, agora já tem dona...

19.6.06

Mapeando Bono!!






Recorrendo ao sistema de câmaras de vigilância da cidade de Dublin, e sabendo de antemão que uma das grandes atracções que a capital irlandesa oferece aos seus visitantes é a possibilidade de se cruzarem na rua com o vocalista dos U2, um grupo de mentes bem humoradas criou o Bono Probability Positioning System version 2 - também conhecido como Google Bono.

Agora, todos nós podemos avaliar as probabilidades de encontrar o cantor, antes mesmo de entrarmos para o avião...

Macacos dançantes






Um video amador de baixa resolução, feito apenas com imagens recolhidas na internet, pode exprimir uma mensagem pertinente sobre a nossa civilização? Pode. Para conferir, é vê-lo aqui.

Ah, e tem legendas em português...

O Maoísmo Digital






Jaron Lanier publicou há três semanas atrás, na revista Edge, um interessante artigo sobre as inevitáveis limitações do colectivismo digital - como no caso da Wikipedia - e as aberrações a que ele conduz. Vale a pena ler, aqui. E depois meditar e debater.

18.6.06

Fábula


Tem a mentida Fortuna muitos queixosos e nenhum agradecido. Chega este descontentamento até às bestas, mas a quem melhor? O mais queixoso de todas é o mais simples. Ia-se este queixando de corrilho em corrilho, e achava não só compaixão, mas aplauso, especialmente no vulgo.

Um dia, pois, aconselhado de muitos e acompanhado de nenhum, dizem que se apresentou na audiência geral do soberano Júpiter. Aqui, profundamente humilde (que o é de agradecer a um néscio), e outorgada a inestimável licença de ser escutado, pronunciou mal esta pior traçada arenga:

«Integérrimo Júpiter, que justiceiro e não vingador te desejo: Aqui tens ante tua majestosa presença, o mais infeliz, sobre ignorante, dos brutos, solicitando não tanto a vingança de meus agravos quanto o remédio de minhas desditas. Como passa, oh Númen eterno!, tua inteireza pela impiedade da Fortuna, só para mim cega, tirana e até madrasta, já que pela natureza me fez o mais simples dos animais, que é dizer quanto se pode? Por quê há-de esta cruel, a tanta carga, ajuntar a sobrecarga de desditado, violando o uso e atropelando o costume? Me faz ser néscio e viver descontente. Persegue a inocência e favorece a malícia: o soberbo Leão triunfa; o Tigre cruel vive; a Raposa, que a todos engana, de todos se ri; o voraz Lobo passa. Eu só, que a ninguém faço mal, de todos o recebo. Como pouco, trabalho muito; nada do pão, tudo do pau. Traz-me desalinhado, e eu, que me sou feio, não posso aparecer entre gentes, e sirvo de acarrear vilões, que é o que mais sinto.»

Comoveu grandemente esta lastimosa proclamação a todos os circunstantes. Só Júpiter severo, que não se imuta assim vulgarmente, alargou a mão sobre que havia estado, não tanto recostado, quanto reservando para a outra parte aquele ouvido: fez ademane que chamassem para dar seu descargo à Fortuna.

Partiram em busca dela muitos soldados, estudantes e pretendentes; advieram por muitas partes e em nenhuma a achavam. Perguntavam a uns e a outros, e nenhum sabia dar razão. Entraram na casa do poderoso Mando, e era tanta a confusão e a pressa com que todos, sem discorrer, se moviam, que não acharam quem lhes respondesse, nem até os escutasse, ainda que toparam com muitos. Discorreram eles que sem dúvida não devia de estar entre tanto desassossego, e não se enganaram. Passaram à casa da Riqueza, e aqui lhes disse o Cuidado que havia estado, mas mui de passagem, não mais senão para encomendar alguns molhos de espinhos e uns taleigões de sovelas. Entraram na quinta da Formosura, que está mui próxima do sexto, para pagá-lo pelas setenas; toparam com a Necedade, e, sem perguntar mais, passaram à da Sabedoria; respondeu-lhes a Pobreza que tão pouco estava ali, porém que de dia a dia a aguardavam.

Só lhes restava já outra casa, que estava sozinha à direita aceira. Chamaram, por estar mui cerrada, e saiu a responder-lhes uma tão formosa donzela, que creram ser alguma das Três Graças, e assim, lhe perguntaram qual era. Respondeu com notável agrado que era a Virtude. Nisto, saía já de lá dentro, e do mais interior, a Fortuna, mui risonha. Intimaram-lhe o mandato e obedeceu ela como sucede, voando às cegas.

Chegou mui reverente ao sacro trono, e todos os do cortejo lhe fizeram muitas cortesias, e até salemas, por recambiá-las. «Que é isto, ó Fortuna! – disse Júpiter – que cada dia hão-de subir a mim as queixas de teu proceder? Bem vejo quão dificultoso é o assunto de contentar, quanto mais a muitos, e a todos impossível. Também me consta que aos mais lhes vais mal porque lhes vais bem, e em lugar de agradecerem o muito que lhes sobra, se queixam de qualquer pouco que lhes falte. É abuso entre os homens nunca pôr os olhos no saco das desditas dos outros, senão no das felicidades, e ao contrário em si mesmos; miram o luzimento do ouro de uma coroa, mas não o peso ou o pesar. Por tanto, eu nunca faço caso de suas queixas, até agora; que as deste, de todas as maneiras infeliz, trazem alguma aparência.»

Mirou-o a Fortuna de revés; ia a sorrir-se, mas, advertindo aonde estava, mediu-se, e, mui recomposta, disse: «Supremo Júpiter, uma palavra só quero que seja meu descargo, e seja esta: se ele é um asno, de quem se queixa?» Foi mui rida por todos a resposta, e pelo próprio Jove aplaudida, e em confirmação dela e ensinança do néscio acusador, mais que consolo, lhe disse:

«Infeliz bruto, nunca vós fôreis tão desgraçado se fôreis mais avisado. Andai e procurai ser de hoje em diante desperto como o Leão, prudente como o Elefante, astuto como a Raposa e cauto como o Lobo. Disponde bem dos meios, e conseguireis vossos intentos; e desenganem-se todos os mortais – disse, alçando a voz – que não há mais dita nem mais desdita que prudência ou imprudência!»


(Capítulo XXIII de «O Discreto», de Baltazar Gracián (1646), em tradução, prólogo e notas de Jorge P. Pires, ed. Frenesi, Lisboa, 2005)

Breve adenda à carta aberta ao DN

Não tenho por hábito corresponder-me com quem não se assina.

De qualquer modo - e para evitar a maçada de ter de voltar a rejeitar «comentários anónimos» - esclareço que o meu «Um Futuro Maior» não foi recenseado no jornal de que eu era então colaborador (o Expresso) senão no ano seguinte à sua publicação.

Adianto até que a recensão foi assinada pelo já falecido Rui Rocha e, apesar de me ter desgostado, não a contestei, precisamente por achar que, de todos os locais em que o poderia fazer, aquele era o menos indicado. E também por já então pensar que, em geral, os factos têm sempre um peso superior ao dos comentários.

6.6.06

Carta (agora aberta) ao Diário de Notícias




Exmos. Senhores,

Durante a leitura do suplemento do Diário de Notícias da passada sexta-feira, 2 de Junho de 2006, fui surpreendido, na página 25, pelo teor da referência ao meu livro «Um Futuro Maior», publicado em Novembro de 1995, e que aí surge incluído num rol de «biografias musicais», em termos que me merecem, mais do que um comentário, dois esclarecimentos urgentes.

Com efeito, o meu livro não é uma biografia, nunca o apresentei como tal, e, se alguma preocupação formal tive aquando da sua feitura, foi exactamente a de não «fazer uma biografia» – e muito menos uma «biografia musical», conceito que não consigo entender inteiramente. O esclarecimento poderá parecer tardio, mas, segundo creio, ao longo dos já quase onze anos decorridos desde a sua publicação, o dito livro nunca foi objecto de qualquer recensão, análise ou tentativa de interpretação nas páginas do DN. Limito-me, pois, a aproveitar a oportunidade.

Esclareço também que «Um Futuro Maior» foi retirado do mercado há mais de um ano, tendo eu e Pedro Ayres Magalhães adquirido os exemplares que ainda restavam em armazém. Muito estranho, pois, que o meu livro surja aparentemente referido como uma das obras encontradas nas livrarias que Nuno Galopim visitou na última semana. À excepção de um ou outro exemplar que ainda possa ser localizado em saldos ou em alfarrabistas, dificilmente ele poderá ser localizado em qualquer livraria, seja em semanas passadas ou futuras.

Observo ainda que o nome com que assinei o livro é citado incorrectamente no referido artigo.

Por último, parece-me bastante infeliz, e triste, que tal referência integre uma sequência de artigos, entre as páginas 22 e 25 do mesmo suplemento, que visam promover, explicitamente ou por analogia, e sem grande pudor, o novo livro do mesmo Nuno Galopim – o que não teria importância de maior, caso ele não acumulasse ainda as funções de editor do referido suplemento.

A este respeito, ocorre-me pois recordar o teor do ponto 10. do Código Deontológico do Jornalista, o qual, julgo eu, continua em vigor, e que sempre me pareceu particularmente explícito nesta matéria: «O jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional. O jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesses».

Os melhores cumprimentos
Jorge Pereirinha Pires

5.6.06

Raul Indipwo (2 - o Duo Ouro Negro)










Em 1959, os amigos de infância Raul Indipwo e Milo Macmahon (ou Raul Cruz e Emílio Pereira, como foram conhecidos até 1973) fundaram em Vila Carmona, Angola o Duo Ouro Negro, cujo repertório, entre baladas e danças, era apresentado como um elenco do folclore angolano, das suas várias etnias e línguas. Milo trabalhava como regente agrícola e Raul era tesoureiro de uma firma de Luanda. Nesse mesmo ano, ao vê-los num espectáculo na capital angolana, um empresário lisboeta interessou-se pelo grupo e convenceu-os a virem actuar na Europa.

Lisboa serviu apenas como ponto de partida para uma carreira internacional que, ao longo da década de 60 os tornaria conhecidos na Europa, em África, e mesmo na América Latina e no Japão. Os primeiros discos gravados em Lisboa constituiram êxito imediato, a que se seguiram variadas exibições na rádio, na televisão e em diversas casas de espectáculos. Entre 1960 e 1963 efectuaram várias digressões na Europa, nomeadamente em Espanha (onde a Embaixada de Portugal lhes atribuiu a Medalha de Mérito), França, Suécia (onde a principal actuação foi no «Burns», em Estocolmo, com Eartha Kitt) e Finlândia, além de Angola e Moçambique. Após a gravação do álbum «Mulowa África», estrearam-se em 1965 no palco do Olympia, em Paris. Em 1966 - enquanto em Lisboa lhes era atribuído o Prémio da Imprensa - actuaram na Salle Garnier da Ópera de Monte Carlo, especialmente para os Príncipes do Mónaco, durante as comemorações do IV centenário daquele principado, e foram filmados em Paris para o programa televisivo «Les Argonauts». Em 1967 actuaram no Olympia durante três semanas em Maio e três semanas em Outubro, e participaram em vários espectáculos nas televisões europeias. Foram então convidados a actuar no II Festival Internacional de Música Pop do Rio de Janeiro, onde acabaram galardoados com a Medalha de Ouro, fazendo depois vários recitais no Teatro Cecília Meireles e no Canecão. No mesmo ano - aquele em que um dos ritmos da moda parisiense era a «kwela» lançada pelo Duo Ouro Negro - foram uma das grandes atracções internacionais convidadas a participarem no «Rendez-Vous avec Danny Kaye», um espectáculo de comemoração do 20º aniversário da UNICEF, transmitido em directo do Alhambra, em Paris, para mais de 200 milhões de telespectadores.

A partir de Paris ganharam o Canadá em 1968, com actuações em Montréal, no Teatro Maison Neuve, sendo os recitais acompanhados por excelentes críticas na imprensa. Foram assim convidados a actuar na gala de Abertura do MIDEM (então na sua terceira edição), e daí partiram para concertos em Bruxelas (Teatro Ancien Belgique), Liége e Antuérpia. Actuaram no programa «Europa 1», inaugurando um novo canal televisivo a cores em Bremen, Alemanha. Participaram também no Festival de Split, Jugoslávia, que foi transmitido em directo pela Eurovisão e Intervisão. Nesse mesmo ano, culminando uma intensa mas casuística colaboração com a RTP em programas de variedades, o Duo Ouro Negro concebeu e apresentou uma produção televisiva original, «A Rua d’Eliza», uma opereta africana com música, texto, coreografia e direcção de cena assinadas por Raul e Milo. O programa seria depois seleccionado para representar a televisão portuguesa no Festival de Milão. Antes de 1968 chegar ao seu termo, o Duo foi ainda aos Estados Unidos pela primeira vez: actuaram em Nova Iorque e em Chicago, e assinaram um contrato de representação com a Columbia Artists Management, preparando uma futura e mais intensa deslocação nos EUA.

Em 1969, na Argentina, fizeram dois recitais no Teatro Maipu, em Buenos Aires, gravaram quatro espectáculos televisivos e ainda o LP «Ouro Negro Latino», que em Portugal foi editado com o título «Sob o Signo de Yemanjá». O disco inclui a canção «El Fuego Compartido», composta para um grupo de estudantes argentinos, e também alguns trechos de Ataualpa Yupanki. Regressaram à Europa e a África para novas digressões, antes de, em Nova Iorque, actuarem no Waldorf Astoria.

Foi apenas em 1970 que consumaram a sua almejada digressão norte-americana. A 16 de Janeiro desse ano, a revista «Nova Antena» publicava uma reportagem da conferência de imprensa dos cantores no aeroporto de Lisboa, de partida para dois meses de digressão no Canadá e Estados Unidos. O empresário do grupo, Carlos Robalo, dizia aos repórteres presentes que aquilo que iriam ganhar era «O suficiente para não pensarmos mais em contratos em Portugal». Fariam 43 concertos em universidades e teatros de 37 estados diferentes, entre os quais o teatro da Metro Goldwyn Mayer, em Hollywood e Las Vegas. Após nova digressão por Angola e Moçambique - e uma noite de música africana durante o primeiro teste do Festival de Vilar de Mouros (que teria a sua grande vez em 1971) - seguiu-se a primeira actuação do Duo Ouro Negro no Japão, em Osaka, durante a Expo-70, com dois espectáculos especialmente concebidos para o Osaka Hall, a sala maior do recinto.

E de facto - quase confirmando as previsões de Carlos Robalo - nos anos seguintes a carreira do grupo desenvolver-se-ia principalmente fora de Portugal Continental - uma longa estadia no Oriente, ao longo da qual foram editados vários discos do Duo no Japão, entre os quais o LP «O Espectáculo é Ouro Negro»; concertos em Angola, no Brasil e em Paris. A digressão de lançamento do álbum «Epopeia» foi lançada em Angola e na Austrália. Actuaram no Festival Mundial de Televisão em Knock Lezut, na Bélgica. Em Lisboa, o espectáculo «Blackground» recebeu novamente o Prémio da Imprensa, e o grupo manifestou a sua intenção de abandonar a criação de canções fúteis como «Maria Rita» e «Silvie» para se empenharem essencialmente na divulgação do folclore angolano. Haviam prosperado nos negócios, e tornaram-se sócios de uma empresa mineira em Angola, de que Milo era o presidente da administração. Raul descobrira entretanto o interesse pela pintura, tendo feito a sua primeira exposição em Lisboa, em 1973.

Em Fevereiro de 1974, entrevistado por Regina Louro para a revista «Flama», Milo apontava, com algum sarcasmo, algumas razões para há muito tempo não actuarem em Portugal: «Quais são os artistas portugueses que têm actuado aqui? A verdade é que não há um sítio, uma casa de music-hall para cantarmos. Os teatros têm os seus elencos, os cinemas o que querem é vender filmes, a televisão contrata como vedetas cançonetistas que lá fora ficam num plano inferior a nós. Ao artista português mais não resta do que esperar pelo Verão para ir a feiras, festas na província, ou a um ou outro casino nas estâncias balneares. Fora desse período está condenado a uma carreira internacional». Após a Revolução, a carreira do grupo prosseguiu, com um natural incremento de extroversão e libertarismo psicadélico. Nesse ano compuseram o tema «Baile dos Trovadores» para o festival RTP da Canção, interpretado por Rita Olivais. Em 1975 fizeram novas digressões nos EUA e na Europa, tendo apresentado na Alemanha o espectáculo «Blackground», com transmissão pela Eurovisão. Em 1976, nova digressão nos Estados Unidos, a que se seguiram três concertos no Festival de Perth, na Austrália, e uma reaparição no Olympia de Paris para um concerto único, do qual resultou um álbum gravado ao vivo.

A partir do final dessa década, a carreira do Duo Ouro Negro assumiria um ritmo mais calmo e uma maior concentração no trabalho de estúdio, de que resultaram álbuns como «Lindeza» (1978), o duplo álbum «Blackground» (1980), «Aos Nossos Amigos» (1984) e «África Latina» (1986). Pelo meio fizeram algumas grandes produções em palco, como o espectáculo «Império de Iemanjá», apresentado ao vivo no Teatro da Trindade em 1981 com um elenco que incluía 23 elementos, entre cantores, músicos e bailarinos. A morte de Milo, no final dos anos 80, encerraria a carreira do Duo Ouro Negro. Raul Indipwo encetou uma carreira a solo mas, após a criação da Fundação Ouro Negro, tem actuado essencialmente em saraus e espectáculos de benemerência.


© Jorge P. Pires (11Fev1997)

Raul Indipwo 1933-2006 (1)





Já mal me lembrava de ter visto na televisão, há muitos, muitos anos atrás, o Duo Ouro Negro na «Rua de Eliza» quando, em finais do século passado, tive o grato prazer de ser convidado para almoçar com o Raul Indipwo em sua casa. Recordo: um excelente peixe assado, a descoberta dos benefícios da limonada com gengibre, e, sobretudo, uma memorável tarde de conversa, ao longo da qual, após me ter transportado de sala em sala no seu labiríntico lar, ele passou em revista a sublime odisseia do Duo Ouro Negro. Pasmei tanto que, contrariando um hábito de anos, não cheguei a gravar a mínima declaração. Recordo também: a casa do Raul era um pequeno mas permanente centro de artes e de amizades. Nessa tarde, e em dependências distintas, estavam lá a ensaiar duas bandas - a de Tó Neto («conheço-o desde miúdo, era amigo do pai dele») e os Ciganos d'Ouro, ainda com Pedro Jóia - que visitámos antes de o Raul me mostrar os seus quadros e o belíssimo disco que publicara um ano antes, perante o total silêncio da imprensa.

Desde então encontrámo-nos algumas vezes, em eventos públicos, onde a figura alva do cantor/pintor continuava a irradiar simpatias e empatias. Nunca soube da sua doença; soube agora do seu falecimento, pouco depois de haver recuperado aquela receita da limonada com gengibre (por agora, resta um pouco no frigorífico...).

Enquanto procuro o resto das minhas notas sobre o Duo Ouro Negro (eu sei que as tenho), republico aqui o que escrevi há sete anos sobre a edição do duplo CD Kurikutela, uma compilação dos grandes êxitos do grupo que, também essa, não mereceu grande atenção. A bem dizer, tirando este meu artigo (à época publicado no Expresso), não conheço mais nenhum. Se acharem que estou errado, agradeço que me deixem um comentário no espaço reservado para o efeito.

Recordo ainda: o Raul sabia que aquela história merecia ser contada de maneira condigna, e tinha a esperança de que fosse o José Eduardo Agualusa a encarregar-se de o fazer. Naquela tarde achei que isso era uma excelente ideia. Hoje penso o mesmo.


UMA MIRAGEM

DUO OURO NEGRO
KURIKUTELA – 40 ANOS, 40 ÊXITOS
Duplo CD EMI-Valentim de Carvalho, 1998


Houve um tempo, um tempo breve, em que pareceu que a música popular portuguesa podia ser assim: uma coisa intercontinental, afro-europeia e euro-africana, que pregava um estilo de vida dominado pela elegância e a alegria; atenta às mudanças do mundo e a cada uma das novas tendências internacionais; ecuménica, capaz de acolher no seu seio a memória do antigo reino dos Kwaniamas enquanto gerava luminosas versões de canções dos Beatles cantadas em português e acotovelava as grandes estrelas da época, como Eartha Kitt, Peter Ustinov, Maria Callas, Charles Aznavour ou Gina Lolobrigida. Houve um tempo em que o Duo Ouro Negro, que nasceu no sul de Angola na segunda metade da década de 50, de lá saíu como uma estrela cadente, para fazer escala em Lisboa antes de partir em direcção a outras e mais vibrantes constelações. Houve um tempo em que pareceu que Angola ia ser assim.

Sendo originalmente um trio, foi já como duo que Raul Indipwo e Milo MacMahon - então conhecidos ainda com os seus nomes lusitanos, Raul Aires Peres e Emílio Pereira – se tornaram conhecidos graças às suas espantosas harmonias vocais e a um domínio exímio da guitarra. A princípio projectavam apresentar um elenco do folclore angolano e das suas várias etnias e línguas. Mas a canção que foram estrear ao Cine-Teatro Restauração, em Luanda, e que se tornou o seu primeiro grande êxito, já havia excedido esses limites. No seu registo impressionista e misterioso, «Kurikutela», cujo nome significa «comboio» e celebra o veículo de ferro onde «Toda a gente leva pressa/ de chegar à sua terra/ Estão os parentes à espera» ainda hoje se dá a ouvir como um caso à parte.

Após o êxito conseguido na capital angolana chegam a Lisboa em 1959 pela mão do empresário cinematográfico Ribeiro Belga e, apesar da concorrência em voga no mundo da canção, conquistam em absoluto o público com actuações no Cinema Roma e no Casino Estoril, gravam três discos (inicialmente acompanhados pelo conjunto de Sivuca, depois pela orquestra de Joaquim Luís Gomes), passam pelos écrãs da RTP (onde nessa época se actuava sempre em directo) e regressam a Angola pouco antes do eclodir da guerra, em 1961. Até 1984, ano do falecimento de Milo, decorrerá então o período efervescente do Duo Ouro Negro, marcado por diversas fases e pela polarização do reportório (como todos, submetido à vigilância da censura prévia) entre os registos pop mais inanes e lustrosos de romantismo radiofónico, e outras canções que, não sendo de intervenção política, serão no mínimo de intervenção ideológica. O próprio ano de 1961, em que publicam «Garota» («...se eu beijar sua boca/ Deixará de ser garota/ Passará a ser mulher») e «Mãe Preta» (uma canção espantosa que fala da escravatura glosando a melodia do «Barco Negro» cantado por Amália) é um bom exemplo deste estado de coisas algo esquizóide: celebrados como verdadeiros ídolos em Angola – e ali impedidos pelo censores de interpretarem em palco parte do seu reportório – a presença mediática que conquistaram na metrópole fez com que aqui fossem olhados como um novo trunfo do regime, a garantia de que, apesar da guerra, a existência de um Portugal pluricontinental, como «muitas raças, um só povo» era um dado indesmentível.

O que não pode ser desmentido, porém, é que o verdadeiro trunfo do Duo sempre foi a perspicácia e a actualidade da sua visão africanista, que também poderemos interpretar como uma fidelidade às origens. E isto apesar dos triunfos internacionais que lhes surgem pela frente logo na primeira metade dos anos 60, quando percorrem o norte da Europa e de lá regressam com versões em português dos Beatles («Agora Vou Ser Feliz», em 1964, com nova letra sobre a melodia de «I Wanna Hold Your Hand») e de Charles Aznavour («La Mamma») - antes ainda das actuações no Olympia parisiense (1965), das galas para os Príncipes do Mónaco (1966), do convite para o primeiro grande espectáculo televisivo da UNICEF e das primeiras actuações no Rio de Janeiro (1967). Estas últimas motivaram aliás nova explosão criativa, de início patente em temas como «Quando Cheguei ao Brasil»: «Minha terra era Cabinda/ No Maiombe eu nasci/ Meu cantar era marimba/ Antes de vir para aqui// Quando cheguei ao Brasil/ Sem a minha liberdade/ Quando cheguei ao Brasil/ Tudo em mim era saudade». Era a celebração da diáspora africana, mas também o início do período afro-latino, que ao longo dos anos daria origem a temas como o espantoso «Moamba, Banana e Cola» (1969, com a orquestra de Jorge Leone), «Iemanjá» (1971) ou o encíclico «África Latina» (1979). Comparativamente, a longa digressão pelo Extremo Oriente – a que o Duo se remete na primeira metade dos anos 70, após a sua exibição na Expo de Tóquio – não parece ter deixado grandes marcas no reportório que praticavam.

Para a escala a que estamos habituados, é uma história imensamente rica e extremamente invulgar a que se conta nos 40 êxitos reunidos neste disco – pronto há um ano, mas só agora colocado à venda. Mais do que a miragem do que o nosso passado comum poderia ter sido, é a história de uma miragem de futuro, também ela invulgar, e que pode sintetizar-se, afinal, em breves linhas: «Sou da África Latina/ Sou do século 21/ Nossa gente está por cima/ Todos juntos somos um». É a grande vantagem das canções.

© Jorge P. Pires, 1999

29.5.06

Regresso aos Açores












A 2000 quilómetros de outro lugar qualquer as pessoas atapetam as ruas com flores. É uma terra de milagres - o primeiro dos quais é ser terra e existir, ali, no meio de tanta água. Habita-se uma força vital de cada vez que se comem os tremoços e as lapas com massa de pimentão, ou quando se aspira o perfume dos ananases e das criptoméridas (agora me lembro). Da Vista do Rei não se conseguia vislumbrar a mínima parte das Sete Cidades, o que é muito natural. Nas ruas de Ponta Delgada, as pessoas acotovelavam-se para comprar ou depositar os seus círios ardentes: eram as Festas do Santo Cristo, para mim as primeiras, para eles um ritual que chama milhares, vindos de toda a parte. Alguns, vimos, vêm a pé; outros, muitos, chegam de avião. Foi um regresso beatífico, graças ao simpático convite das Criações Periféricas para ir ao Teatro Micaelense falar de «música, traduções, filosofia». Falei - da música, quase nada. A Cristina L. Duarte, a Margarida Gil, o Armando Silva Carvalho, também falaram, cada um na sua tarde. O Rui Zink tinha por lá passado uns dias antes. Eu e a CD passámos a manhã de sábado nos estúdios da RDP, frente ao dinâmico e grácil Sidónio Bettencourt. Foi bom rever o Bruno e o João da Ponte, conhecer a Diana Diegues, a Blanca, o Miguel Wallenstein. Obrigado a todos. O Zé Paiva e a Belinha têm um barco novo - haveremos de ir a Sta. Maria, afogar os olhos no azul. Como se fôssemos formigas.

27.5.06

A Geração Invisível - William S. Burroughs / Brion Gysin


(foto: Gerard Malanga Archives - Brion Gysin e William Burroughs no seu apartamento em St. James, Londres, 1972)






aquilo que vemos é em grande parte determinado por aquilo que ouvimos podeis verificar esta proposição efectuando uma experiência muito simples desligai a banda sonora do vosso aparelho de televisão e substituí-a por uma banda sonora arbitrária pré-registada no vosso gravador de fita ruídos da rua música conversas gravações de outros programas de televisão constatareis que esta banda sonora arbitrária parece ser apropriada e vai de facto determinar a vossa interpretação da banda visual no écran pessoas que correm atrás de um autocarro em picadilly com uma banda sonora de rajadas de metralhadora parecem petrogrado em 1917 podeis alargar esta experiência utilizando materiais gravados mais ou menos apropriados à banda visual usai por exemplo um discurso político televisivo cortai-lhe o som e substituí-o por um discurso que já houvésseis gravado é difícil perceber a diferença e não é tudo gravai a banda sonora do programa de espiões danger man from uncle usai-a em vez de uma outra e vede se os vossos amigos não são capazes de perceber a diferença faz-se tudo com gravadores de fita consideremos esta máquina e o que ela pode fazer pode gravar e tocar activando um tempo passado determinado por associação precisa uma gravação pode ser tocada qualquer número de vezes podeis estudar e analisar todas as pausas e inflexões de uma conversa gravada porque é que este e aquele disseram isto e aquilo mesmo aqui tocai as gravações deste e daquele e descobrireis o que provoca as entradas de um e de outro podeis editar uma conversa gravada retendo material que é incisivo espirituoso e pertinente podeis editar uma conversa gravada retendo as observações que são aborrecidas banais e tolas um gravador de fita pode tocar em marcha acelerada em marcha lenta ou em retrocesso podeis aprender a fazer estas coisas gravai uma frase e acelerai-a agora tentai imitar a vossa voz acelerada tocai uma frase em retrocesso e aprendei a desdizer o que dissestes ainda agora... tais exercícios libertar-vos-ão dos velhos laços associativos tentai fazer avançar a fita aos poucos este som produz-se com um texto gravado para melhores resultados um texto dito em voz alta e clara e esfrega-se a fita para trás e para a frente sobre a cabeça o mesmo som pode ser produzido com um philips compact cassette recorder tocando uma fita enquanto se liga e desliga em curtos intervalos o interruptor de ligar e desligar o microfone o que produz um efeito de gaguez tomai um qualquer texto acelerai-o desacelerai-o tocai-o em retrocesso avançai a fita à mão e ouvireis palavras que não estavam na gravação original palavras novas feitas pela máquina pessoas diferentes detectarão palavras diferentes como é óbvio mas algumas das palavras estão ali com grande evidência e qualquer um as pode ouvir palavras que não estavam na fita original mas que muitas vezes são relevantes para o texto original como se as próprias palavras houvessem sido interrogadas e forçadas a revelarem os seus sentidos ocultos é interessante gravar estas palavras palavras literalmente feitas pela própria máquina pode ainda desenvolver-se esta experiência utilizando como gravação original material que não contenha palavras ruídos de animais por exemplo gravai em directo porcos chafurdando latidos de cães ide ao zoo e gravai os bramidos de Guy o gorila os grandes felinos rosnando à volta da sua carne cabras e macacos agora tocai os animais em retrocesso acelerai desacelerai avançai os animais manualmente e verificai se daí emergem algumas palavras claras vede o que os animais têm a dizer vede como os animais reagem à leitura de uma fita processada a mais simples variedade do cut up em fita pode ser efectuada com uma máquina como esta gravai qualquer texto retrocedei até ao início avançai agora a intervalos arbitrários parai a máquina e gravai um curto texto avançai parai gravai nos locais em que haveis gravado sobre o texto original as palavras são apagadas e substituídas por novas palavras fazei isto várias vezes criando justaposições arbitrárias observareis que os cortes arbitrários são em muitos casos apropriados e que a vossa fita intercalada produz um sentido surpreendente as fitas intercaladas podem ser hilariantes há vinte anos ouvi uma fita intitulada o meteorologista ébrio preparada por jerry newman de nova iorque com excertos de boletins meteorológicos não consigo a esta distância recordar-me das palavras mas lembro-me que ri até cair da cadeira abaixo paul bowles chama ao gravador o brinquedinho de deus talvez o seu último brinquedo evaporando-se com o ar frio da primavera coloque uma questão descolorida
pode jogar-se com qualquer número
sim pode jogar-se com qualquer número quem tiver um gravador de fita que controle a banda sonora poderá influenciar e criar acontecimentos as experiências com gravadores de fita aqui descritas mostrar-vos-ão como esta influência se pode estender e correlacionar para uma operação precisa esta é a geração invisível ele parece um executivo de publicidade um estudante universitário um turista americano não importa qual é o vosso alibi desde que ele vos forneça um disfarce e liberdade de movimentos precisareis de ter à mão um philips compact cassette recorder uma máquina para gravar e tocar na rua podeis transportá-la debaixo do casaco para gravar parece um rádio de transístores quando se toca tocar em plena rua mostrará a influência da vossa banda sonora em operação é evidente que as gravações de rua são as mais indetectáveis as pessoas não reparam nas vozes de ontem em carros fantasma buracos no tempo acidentes do tempo passado tocados no tempo presente guinchos de travões o som forte de uma buzina ausente podem provocar acidentes aqui os fogos antigos ainda se acendem os prédios antigos ainda caem ou levai para a rua uma banda sonora prégravada aquilo que quiserdes libertar em sublime irenismo tocai dois minutos gravai dois minutos misturando a vossa mensagem com a rua soprai a vossa mensagem directamente num ouvido que valha a pena alguns portadores são melhores que outros vós sabeis quais lábios que se movem murmurantes transportam a minha mensagem por toda a londres no nosso submarino amarelo trabalhando com gravações na rua descobrireis que a leitura das vossas fitas encontra o contexto apropriado por exemplo estou a tocar algumas das minhas fitas com as últimas palavras de dutch schultz na rua cinco alarmes de incêndio e um carro de bombeiros surgem no fim aprendereis a dar as deixas aprendereis a plantar acontecimentos e conceitos após analisar as conversas gravadas aprendereis a conduzir uma conversa para onde pretendeis que ela vá a libertação fisiológica obtida à medida que são cortadas as linhas de palavras de associação controlada tornar-vos-á mais eficientes na prossecução dos vossos objectivos seja o que for que façais fá-lo-eis melhor gravai os vossos patrões e colegas analisai os seus padrões associativos aprendei a imitar as suas vozes oh tornar-vos-eis homens muito populares no escritório mas com quem não é fácil competir pelos métodos habituais gravai os sons dos seus corpos com microfones ocultos o ritmo da respiração os movimentos dos intestinos depois do almoço o bater dos corações sobrepondo agora os vossos próprios sons corporais e tornai-vos a palavra que respira e o coração que bate naquela organização tornai-vos aquela organização os irmãos invisíveis estão a invadir o tempo presente quanto mais pessoas conseguirmos pôr a trabalhar com gravadores mais experiências e extensões úteis acabarão por aparecer porque não fazer festas de gravadores cada convidado chega com o seu gravador e fitas daquilo que pretende dizer durante a festa gravando aquilo que os outros gravadores lhe pretendem dizer a ele o cúmulo da indelicadeza é não gravar quando somos interpelados directamente por outro gravador e não se pode dizer nada directamente é preciso gravar primeiro os veteranos da fita que têm pinta nunca falam directamente
que tal correu a festa começa a tocar a fita
que aconteceu ao almoço começa a tocar a fita
de olhos velhos desenganado ilegível há dez anos que ele não diz uma palavra e à medida que ouvirdes como foi a festa e o que aconteceu ao almoço começareis a ver clara e distintamente existia um véu cinzento entre vós e aquilo que víeis ou que com maior frequência não víeis esse véu cinzento eram as palavras prégravadas de uma máquina de controlo uma vez removido esse véu vereis com maior clareza e distinção do que aqueles que estão por detrás do véu o que quer que façais fá-lo-eis melhor do que aqueles que estão por detrás do véu esta é a geração invisível esta é a geração eficiente as mãos trabalham e irão ver alguns resultados interessantes quando várias centenas de gravadores aparecerem num comício político ou numa manifestação pelas liberdades suponhamos que gravais o mais feio e rabugento homem da lei do sul várias centenas de gravadores cuspindo-o para a frente e para trás e mascando-o como uma vaca com febre aftosa tendes agora um som que poderia tornar inóspita qualquer vizinhança várias centenas de gravadores ecoando os leitores poderiam trazer alguma magia imprevista a uma sessão de poesia e pensai no que poderiam fazer cinquenta mil fãs dos beatles armados com gravadores no shea stadium várias centenas de pessoas gravando e tocando na rua produzem ali mesmo um happening um deputado conservador falou da crescente ameaça de grupos ou de jovens irresponsáveis armados de gravadores reproduzindo sons de tráfego que confundem os automobilistas contendo insultos gravados em clubes obscuros de mayfair e picadilly esta crescente ameaça à ordem pública colocai na rua mil jovens gravadores com gravações de tumultos esse murmúrio torna-se maior e maior recordai que esta é uma operação técnica um passo de cada vez eis uma experiência que pode ser efectuada por quem estiver equipado com duas máquinas ligadas por um cabo de extensão para que possa gravar directamente de uma máquina para a outra dado que a experiência pode dar origem a uma acentuada reacção erótica torna-se mais interessante seleccionar para vosso parceiro alguém de quem sejais íntimos temos dois sujeitos b. e j. b. grava no gravador 1 j. grava no gravador 2 agora alternamos as duas pistas de voz o gravador 1 toca dois segundos o gravador 2 grava o gravador 2 toca dois segundos o gravador 1 grava alternando a voz de b. com a voz de j. para obter algum grau de precisão as duas fitas devem ser cortadas com tesoura e as peças alternadas retalhadas em conjunto este é um processo longo que poderá ser acelerado de forma apreciável no caso de terdes acesso a uma sala de montagem e à utilização de película cinematográfica que é mais larga e fácil de manusear podeis ainda levar esta experiência mais longe com um filme sonoro de b. e um filme sonoro de j. separando as pistas de som e imagem vinte e quatro alternâncias por segundo tal como prescrevi é aconselhável o exercício de algum cuidado na escolha do parceiro para tais experiências uma vez que os resultados podem ser bastante drásticos b. dá por si a falar e a pensar tal e qual como j. j. vê a imagem de b. no seu próprio rosto o rosto de quem b. e j. estão permanentemente conscientes um do outro quando separados uma presença invisível e persistente estão de facto a tornar-se um no outro vede que b. retrospectivamente era j. devido ao facto de estar gravado nas pistas de som e imagem de j. as experiências com fitas cortadas podem dar origem a relações explosivas devidamente trabalhadas como é evidente de modo a alcançar um alto grau de cooperação efectiva começareis a ver a vantagem transmitida a j. se ele desenvolvesse tais experiências sem o conhecimento de b. e tantas aplicações do princípio da fita cortada começarão a sugerir-se elas mesmas ao leitor atento supunhamos que éreis um tipo num fato de flanela cinzenta pretendendo apresentar um novo conceito de publicidade ao velho então antes de atacardes o velho gravais a voz do velho e intercalais a vossa própria voz expondo o vosso novo conceito e libertais tudo no sistema de ar condicionado do escritório intercalai-vos com os vossos cantores populares favoritos intercalai-vos com meteorologistas primeiros ministros presidentes
porquê parar aí
porquê parar algures
toda a gente se intercala com os outros sim rapazes sou eu que estou ali junto à misturadora de cimento o próximo passo e garanto-vos que será dispendioso são os gravadores de fita programáveis uma máquina totalmente programável podia ser armada para gravar e tocar a intervalos seleccionados para rebobinar e recomeçar automaticamente após um intervalo seleccionado permanecendo em operação contínua supunhamos que tendes três máquinas programadas o gravador 1 programado para tocar cinco segundos enquanto o gravador 2 grava o gravador 2 toca três segundos enquanto o gravador 1 grava agora digamos que estais a discutir com o vosso namorado ou namorada recordando o que foi dito da última vez e pensando em coisas para dizer da próxima vez sempre e sempre não vos conseguis calar colocai todos os vossos argumentos e queixas no gravador 1 e chamai o gravador 1 pelo vosso próprio nome no gravador 2 colocai as coisas que ele ou ela vos disseram ou poderão vir a dizer caso surja a ocasião nos gravadores agora fazei falar as máquinas gravador 1 toca cinco segundos gravador 2 grava gravador 2 toca três segundos gravador 1 grava fazei-o durante quinze minutos meia hora agora trocai de intervalos colocando no gravador 2 o intervalo que haveis usado no gravador 1 a troca de intervalos pode ser tão importante quanto o contexto escutai as duas máquinas misturai tudo agora no gravador 3 podeis introduzir o factor da resposta irrelevante portanto colocai qualquer coisa no gravador 3 velhas piadas velhas melodias partes de rua rádio e televisão e programai o gravador 3 para a discussão
gravador 1 na noite passada esperei por ti até às duas
gravador 3 o que nós queremos saber é quem pôs areia nos espinafres
descobrir-se-á que o uso da resposta irrelevante é eficaz no derrube das pistas de associação obsessivas todas as pistas de associação são obsessivas tirai isso da cabeça e colocai-o nas máquinas parai de discutir parai de vos lamentar parai de falar deixai as máquinas discutirem queixarem-se e falarem um gravador de fita é uma secção externalizada do sistema nervoso humano podeis aprender mais sobre o sistema nervoso e ganhar maior controlo das vossas reacções utilizando o gravador do que ficando sentados durante vinte anos na posição do lótus ou perdendo o vosso tempo no divã de análise
escutai as vossas fitas do tempo presente e começareis a perceber quem sois e o que fazeis aqui misturai o ontem com o hoje e ouvi amanhã o vosso futuro libertando-se das velhas gravações sois gravadores de fita programados para gravar e tocar
quem vos programa
quem decide as fitas a tocar no tempo presente
quem toca as vossas antigas humilhações e derrotas detendo-vos num tempo predeterminado e prégravado
não tendes de ouvir esse som podeis programar a vossa própria gravação podeis decidir que fitas pretendeis tocar no tempo presente estudai os vossos padrões associativos e descobri o que se encaixa nas gravações a tocar programai essas velhas fitas faz-se tudo com gravadores há muitas coisas que podeis fazer com gravadores programáveis performances teatrais programadas a intervalos arbitrários de modo a que cada performance seja imprevisível e única permitindo a participação da audiência em qualquer grau leituras concertos os gravadores programáveis podem criar um happening em qualquer lado os gravadores programáveis são evidentemente essenciais em qualquer festa e nenhum anfitrião moderno aborreceria os seus convidados com uma simples festa do tempo presente numa casa moderna todos os quartos estão sob escuta os gravadores gravam e tocam a partir de microfones e altifalantes ocultos vozes fantasmas murmuram pelos corredores e pelos quartos a palavra visível como névoa gravadores nos jardins respondem uns aos outros como cães que ladram a banda sonora traz o estúdio para o palco podeis modificar o aspecto de uma cidade colocando a vossa própria banda sonora nas ruas eis algumas experiências filmando as operações de banda sonora no local encontrai um bairro com telhados de ardósia chaminés de tijolo vermelho banda sonora cinzenta e fria nevoeiro buzinas distantes apita o comboio coaxam as rãs sobre o campo de golfe gravações azuis num mercado de pedras arredondadas com estores azuis todos os velhos e tristes comediantes estão ali em crepúsculo azul um sussurro de escuridão e arames quando vários milhares de pessoas trabalhando com gravadores e filmando as acções subsequentes elegem as suas melhores bandas sonoras e metragens de filme e as intercalam vereis algo de interessante considerai agora o mal que pode ser feito e que tem sido feito quando o gravar e o tocar são efectuados com perícia de forma a que as pessoas afectadas não saibam o que está a passar-se pensamento sentimentos e impressões sensoriais aparentes podem ser manipulados e controlados com precisão tumultos e manifestações à medida por exemplo eles utilizam velhas gravações anti-semitas contra os chineses na indonésia govelnal a loja e fical lico e tlansmitil semple o negócio a outlo pequeno palente supunhamos que quereis deitar abaixo toda a área ide lá e gravai todos os diálogos mais estúpidos e feios a mais discordante banda sonora que conseguirdes encontrar e continuai a tocá-la o que irá ocasionar mais diálogos estúpidos e feios gravados e tocados continuamente seleccionando sempre o material mais feio as possibilidades são ilimitadas se quereis dar início a um tumulto colocai as vossas máquinas na rua com gravações de tumultos movei-vos com rapidez suficiente para ficardes sempre à cabeça da revolta chamamos a isso surfar não há margem para erros recordar as velhas queimaduras colhidas na revolta de um mercado persa com as gravações escondidas por debaixo da djellaba e eles esfolaram-no vivo uma coisa pelada e crua contorcendo-se ao sol do meio dia e nós apanhámos a imagem
estás a apanhar a imagem
as técnicas e experiências aqui descritas foram usadas e estão a ser usadas por agências oficiais e não oficiais sem o vosso conhecimento e para vossa desvantagem pode jogar-se com qualquer número wittgenstein disse que nenhuma proposição se pode conter a si própria como argumento a única coisa não prégravada numa cenário de prégravação é a própria prégravação ou seja qualquer gravação em que opere um factor de acaso qualquer gravação de rua podeis prégravar o vosso futuro podeis ouvir e ver o que quereis ouvir e ver as experiências aqui descritas foram-me explicadas e demonstradas por ian sommerville de londres neste artigo escrevo como seu fantasma
olhai à vossa volta olhai para uma máquina de controlo programada para seleccionar os mais feios estúpidos vulgares e degradados sons para gravar e tocar que provocam mais feios estúpidos vulgares e degradados sons para gravar e tocar degradação inexorável olhai adiante para o beco sem saída olhai adiante para o toque feio e vulgar de amanhã e amanhã e amanhã o que fazem os jornais a não ser seleccionar os sons mais feios para tocar em grande parte se é feio é notícia e se isso não chega cito o editorial do new york daily news podemos tomar conta da china e se a rússia intervier também podemos tomar conta dessa nação o único comunista bom é o comunista morto a seguir vamos tomar conta do esclavagista castro estamos à espera de quê vamos bombardear a china já e vamos ficar armados até aos dentes durante séculos este zurro vulgar e feio libertado para tocar em massa se quereis espalhar a histeria gravai e tocai as reacções mais estúpidas e histéricas
marijuana marijuana mas isso é mais mortal que a cocaína
transforma um homem num maníaco homicida disse ele prontamente de olhos frios enquanto pensava nos vampiros que sugam as riquezas do vil tráfico de erva literalmente cheio de sangue humano reflectiu sombriamente de queixo esticado que os passadores deviam ir para a cadeira eléctrica
dispam esses malvados
muito bem vamos lá ver esses braços
ou nas palavras imortais de harry j anslinger as leis devem reflectir a desaprovação do viciado pela sociedade
seria difícil encontrar uma reflexão mais feia do que a desaprovação da sociedade os olhos maus e frios das mulheres americanas decentes lábios apertados e não muito obrigado do lojista chuis desdenhosos olhos mortais do preto pálido reflectindo a desaprovação da sociedade paneleiros do caralho eu acho que é de lhes dar um tiro se por outro lado escolherdes reacções calmas e sensíveis para gravar e tocar espalhareis a calma e o bom senso
estará isto a fazer-se
obviamente não está única forma de cortar a inexorável espiral descendente de feias feíssimas feiérrimas gravações e reproduções é contragravar e reproduzir o primeiro passo consiste em isolar e separar as linhas de associação da máquina do controlo transportai convosco um gravador e gravai todas as coisas feias e estúpidas cortai as vossas feias fitas juntai-as acelerai desacelerai retrocedei avançai a fita à mão ouvireis uma feia voz e vereis que um feio espírito é feito de velhas e feias fitas prégravadas quanto mais tocardes as fitas e as cortardes menos poder elas terão cortai as prégravações em ar em ar fino


Publicado como último capítulo de The Ticket That Exploded, de William Burroughs (Grove Press, New York, 1962).
Versão portuguesa © Jorge P. Pires, 1993

16.5.06

Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592)


Assim como o nosso espírito se fortifica pela convivência com espíritos rigorosos e sensatos, nem se pode dizer quanto se empobrece e degenera pelo contínuo comércio e frequência que temos com espíritos baixos e doentios. Não há peste que se espalhe tanto como essa. Sei por não pequena experiência o preço por que fica. Gosto de discutir e discorrer, mas é com pouca gente e para meu proveito. Porque servir de espectáculo aos grandes e fazer ao desafio exposição do espírito e de palavreado, acho que é ofício que não fica bem a um homem honesto.

Montaigne, Da Arte de Discutir (trad. Agostinho da Silva, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1933)

A indústria do disco contra o consumidor


Desde que a gravação e reprodução de som digital se vulgarizou e os lucros das grandes editoras discográficas mundiais começaram a descer dos picos astrais a que haviam subido durante as décadas de 1960 a 1980, instalou-se a paranóia. Primeiro, possivelmente entre os accionistas. Depois, numa vertigem espiralada, desceu-se ainda mais fundo com as ameaças de processos judiciais e a perseguição às redes peer to peer. Até se chegar à guerra aberta contra os consumidores, transformados no inimigo a abater.

No ano passado, a Sony/BMG, a pretexto de impedir as cópias não autorizadas de música, instalou nos CDs que distribui um programa que, não fazendo apenas isso, também transforma os computadores dos incautos numa desprotegida arena, aberta a toda a sorte de infecções e parasitas logiciais. Tal comportamento, que a editora alega agora ter sido «fortuito», é manifestamente ilegal, como de resto ficou claramente provado, apesar das previsíveis manobras para impedir que tal processo chegasse a tribunal nos EUA.

Esta história foi agora tema de um excelente e detalhado artigo de Wade Roush na Technology Review, cuja publicação, em 3 partes, só estará completa na próxima quinta-feira, sempre neste sítio.