5.6.06

Raul Indipwo 1933-2006 (1)





Já mal me lembrava de ter visto na televisão, há muitos, muitos anos atrás, o Duo Ouro Negro na «Rua de Eliza» quando, em finais do século passado, tive o grato prazer de ser convidado para almoçar com o Raul Indipwo em sua casa. Recordo: um excelente peixe assado, a descoberta dos benefícios da limonada com gengibre, e, sobretudo, uma memorável tarde de conversa, ao longo da qual, após me ter transportado de sala em sala no seu labiríntico lar, ele passou em revista a sublime odisseia do Duo Ouro Negro. Pasmei tanto que, contrariando um hábito de anos, não cheguei a gravar a mínima declaração. Recordo também: a casa do Raul era um pequeno mas permanente centro de artes e de amizades. Nessa tarde, e em dependências distintas, estavam lá a ensaiar duas bandas - a de Tó Neto («conheço-o desde miúdo, era amigo do pai dele») e os Ciganos d'Ouro, ainda com Pedro Jóia - que visitámos antes de o Raul me mostrar os seus quadros e o belíssimo disco que publicara um ano antes, perante o total silêncio da imprensa.

Desde então encontrámo-nos algumas vezes, em eventos públicos, onde a figura alva do cantor/pintor continuava a irradiar simpatias e empatias. Nunca soube da sua doença; soube agora do seu falecimento, pouco depois de haver recuperado aquela receita da limonada com gengibre (por agora, resta um pouco no frigorífico...).

Enquanto procuro o resto das minhas notas sobre o Duo Ouro Negro (eu sei que as tenho), republico aqui o que escrevi há sete anos sobre a edição do duplo CD Kurikutela, uma compilação dos grandes êxitos do grupo que, também essa, não mereceu grande atenção. A bem dizer, tirando este meu artigo (à época publicado no Expresso), não conheço mais nenhum. Se acharem que estou errado, agradeço que me deixem um comentário no espaço reservado para o efeito.

Recordo ainda: o Raul sabia que aquela história merecia ser contada de maneira condigna, e tinha a esperança de que fosse o José Eduardo Agualusa a encarregar-se de o fazer. Naquela tarde achei que isso era uma excelente ideia. Hoje penso o mesmo.


UMA MIRAGEM

DUO OURO NEGRO
KURIKUTELA – 40 ANOS, 40 ÊXITOS
Duplo CD EMI-Valentim de Carvalho, 1998


Houve um tempo, um tempo breve, em que pareceu que a música popular portuguesa podia ser assim: uma coisa intercontinental, afro-europeia e euro-africana, que pregava um estilo de vida dominado pela elegância e a alegria; atenta às mudanças do mundo e a cada uma das novas tendências internacionais; ecuménica, capaz de acolher no seu seio a memória do antigo reino dos Kwaniamas enquanto gerava luminosas versões de canções dos Beatles cantadas em português e acotovelava as grandes estrelas da época, como Eartha Kitt, Peter Ustinov, Maria Callas, Charles Aznavour ou Gina Lolobrigida. Houve um tempo em que o Duo Ouro Negro, que nasceu no sul de Angola na segunda metade da década de 50, de lá saíu como uma estrela cadente, para fazer escala em Lisboa antes de partir em direcção a outras e mais vibrantes constelações. Houve um tempo em que pareceu que Angola ia ser assim.

Sendo originalmente um trio, foi já como duo que Raul Indipwo e Milo MacMahon - então conhecidos ainda com os seus nomes lusitanos, Raul Aires Peres e Emílio Pereira – se tornaram conhecidos graças às suas espantosas harmonias vocais e a um domínio exímio da guitarra. A princípio projectavam apresentar um elenco do folclore angolano e das suas várias etnias e línguas. Mas a canção que foram estrear ao Cine-Teatro Restauração, em Luanda, e que se tornou o seu primeiro grande êxito, já havia excedido esses limites. No seu registo impressionista e misterioso, «Kurikutela», cujo nome significa «comboio» e celebra o veículo de ferro onde «Toda a gente leva pressa/ de chegar à sua terra/ Estão os parentes à espera» ainda hoje se dá a ouvir como um caso à parte.

Após o êxito conseguido na capital angolana chegam a Lisboa em 1959 pela mão do empresário cinematográfico Ribeiro Belga e, apesar da concorrência em voga no mundo da canção, conquistam em absoluto o público com actuações no Cinema Roma e no Casino Estoril, gravam três discos (inicialmente acompanhados pelo conjunto de Sivuca, depois pela orquestra de Joaquim Luís Gomes), passam pelos écrãs da RTP (onde nessa época se actuava sempre em directo) e regressam a Angola pouco antes do eclodir da guerra, em 1961. Até 1984, ano do falecimento de Milo, decorrerá então o período efervescente do Duo Ouro Negro, marcado por diversas fases e pela polarização do reportório (como todos, submetido à vigilância da censura prévia) entre os registos pop mais inanes e lustrosos de romantismo radiofónico, e outras canções que, não sendo de intervenção política, serão no mínimo de intervenção ideológica. O próprio ano de 1961, em que publicam «Garota» («...se eu beijar sua boca/ Deixará de ser garota/ Passará a ser mulher») e «Mãe Preta» (uma canção espantosa que fala da escravatura glosando a melodia do «Barco Negro» cantado por Amália) é um bom exemplo deste estado de coisas algo esquizóide: celebrados como verdadeiros ídolos em Angola – e ali impedidos pelo censores de interpretarem em palco parte do seu reportório – a presença mediática que conquistaram na metrópole fez com que aqui fossem olhados como um novo trunfo do regime, a garantia de que, apesar da guerra, a existência de um Portugal pluricontinental, como «muitas raças, um só povo» era um dado indesmentível.

O que não pode ser desmentido, porém, é que o verdadeiro trunfo do Duo sempre foi a perspicácia e a actualidade da sua visão africanista, que também poderemos interpretar como uma fidelidade às origens. E isto apesar dos triunfos internacionais que lhes surgem pela frente logo na primeira metade dos anos 60, quando percorrem o norte da Europa e de lá regressam com versões em português dos Beatles («Agora Vou Ser Feliz», em 1964, com nova letra sobre a melodia de «I Wanna Hold Your Hand») e de Charles Aznavour («La Mamma») - antes ainda das actuações no Olympia parisiense (1965), das galas para os Príncipes do Mónaco (1966), do convite para o primeiro grande espectáculo televisivo da UNICEF e das primeiras actuações no Rio de Janeiro (1967). Estas últimas motivaram aliás nova explosão criativa, de início patente em temas como «Quando Cheguei ao Brasil»: «Minha terra era Cabinda/ No Maiombe eu nasci/ Meu cantar era marimba/ Antes de vir para aqui// Quando cheguei ao Brasil/ Sem a minha liberdade/ Quando cheguei ao Brasil/ Tudo em mim era saudade». Era a celebração da diáspora africana, mas também o início do período afro-latino, que ao longo dos anos daria origem a temas como o espantoso «Moamba, Banana e Cola» (1969, com a orquestra de Jorge Leone), «Iemanjá» (1971) ou o encíclico «África Latina» (1979). Comparativamente, a longa digressão pelo Extremo Oriente – a que o Duo se remete na primeira metade dos anos 70, após a sua exibição na Expo de Tóquio – não parece ter deixado grandes marcas no reportório que praticavam.

Para a escala a que estamos habituados, é uma história imensamente rica e extremamente invulgar a que se conta nos 40 êxitos reunidos neste disco – pronto há um ano, mas só agora colocado à venda. Mais do que a miragem do que o nosso passado comum poderia ter sido, é a história de uma miragem de futuro, também ela invulgar, e que pode sintetizar-se, afinal, em breves linhas: «Sou da África Latina/ Sou do século 21/ Nossa gente está por cima/ Todos juntos somos um». É a grande vantagem das canções.

© Jorge P. Pires, 1999

5 comentários:

Anónimo disse...

Tinha eu 17 anos quando o Raúl, foi à RTP apresentar esse mesmo disco. Como cresci a ouvi-lo cantar, cheguei inclusivé a gravar a entrevista.
Não culpo o País por não ter dado o valor a estes Senhores (com S "grande"), mas antes a crise de identidade pós anos 80. Ou melhor, possuímos cada vez mais uma identidade "fútil", e somos torturados todos os dias com séries televisivas fáceis, puro entretenimento.
A cultura está num lugar que poucos conhecem, e os que a conhecem são muitas vezes vistos como "kotas", antiquados...

Dou graças aos meus pais por me terem dado a curiosidade que tenho, e sobretudo o prazer de escutar o magnífico reportório, que o Milo de Sá da Bandeira, e o Raúl da Chibia nos deixaram .

Décio do Ó

Anónimo disse...

Fui ao wikipédia e constatei que a página do DON estava apagada por violação de direitos de autor. Em vez de e limitarem a apagar podiam ao menos ter colocado uma versão mais antiga.

Estou a pegar na informação que existia e outras recolhida noutras fontes para fazer uma biografia +/- correcta.

Aproveito para informar que possuo uma edição da extinta revista "Voice" em que Luís Pinheiro de Almeida deu uma alta classificação a esse disco (4 ou 5).

Há alguma razão para terem adquirido os últimos exemplares da Biografia (provocação minha!) dos Madredeus?

Anónimo disse...

gostaria entrar em contacto com alguem da familia do raul assunto serio jorgesilvapro@hotmail.com

Rato disse...

Olá Jorge
Espero que não leve a mal, mas tomei a liberdade de transcrever este seu magnífico texto no blog do rato a acompanhar uma coletânea do Duo Ouro Negro que entendi por bem partilhar.
Reparo que este seu espaço se encontra inactivo. Não vai haver recomeço?
Um abraço do Rato

JOPP disse...

Caro Rato,

não me importo nada que transcreva. Já acho mais bizarro que não cite a origem do texto. Não é assim que a coisa costuma funcionar? Abraço J