6.6.06

Carta (agora aberta) ao Diário de Notícias




Exmos. Senhores,

Durante a leitura do suplemento do Diário de Notícias da passada sexta-feira, 2 de Junho de 2006, fui surpreendido, na página 25, pelo teor da referência ao meu livro «Um Futuro Maior», publicado em Novembro de 1995, e que aí surge incluído num rol de «biografias musicais», em termos que me merecem, mais do que um comentário, dois esclarecimentos urgentes.

Com efeito, o meu livro não é uma biografia, nunca o apresentei como tal, e, se alguma preocupação formal tive aquando da sua feitura, foi exactamente a de não «fazer uma biografia» – e muito menos uma «biografia musical», conceito que não consigo entender inteiramente. O esclarecimento poderá parecer tardio, mas, segundo creio, ao longo dos já quase onze anos decorridos desde a sua publicação, o dito livro nunca foi objecto de qualquer recensão, análise ou tentativa de interpretação nas páginas do DN. Limito-me, pois, a aproveitar a oportunidade.

Esclareço também que «Um Futuro Maior» foi retirado do mercado há mais de um ano, tendo eu e Pedro Ayres Magalhães adquirido os exemplares que ainda restavam em armazém. Muito estranho, pois, que o meu livro surja aparentemente referido como uma das obras encontradas nas livrarias que Nuno Galopim visitou na última semana. À excepção de um ou outro exemplar que ainda possa ser localizado em saldos ou em alfarrabistas, dificilmente ele poderá ser localizado em qualquer livraria, seja em semanas passadas ou futuras.

Observo ainda que o nome com que assinei o livro é citado incorrectamente no referido artigo.

Por último, parece-me bastante infeliz, e triste, que tal referência integre uma sequência de artigos, entre as páginas 22 e 25 do mesmo suplemento, que visam promover, explicitamente ou por analogia, e sem grande pudor, o novo livro do mesmo Nuno Galopim – o que não teria importância de maior, caso ele não acumulasse ainda as funções de editor do referido suplemento.

A este respeito, ocorre-me pois recordar o teor do ponto 10. do Código Deontológico do Jornalista, o qual, julgo eu, continua em vigor, e que sempre me pareceu particularmente explícito nesta matéria: «O jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional. O jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesses».

Os melhores cumprimentos
Jorge Pereirinha Pires

5.6.06

Raul Indipwo (2 - o Duo Ouro Negro)










Em 1959, os amigos de infância Raul Indipwo e Milo Macmahon (ou Raul Cruz e Emílio Pereira, como foram conhecidos até 1973) fundaram em Vila Carmona, Angola o Duo Ouro Negro, cujo repertório, entre baladas e danças, era apresentado como um elenco do folclore angolano, das suas várias etnias e línguas. Milo trabalhava como regente agrícola e Raul era tesoureiro de uma firma de Luanda. Nesse mesmo ano, ao vê-los num espectáculo na capital angolana, um empresário lisboeta interessou-se pelo grupo e convenceu-os a virem actuar na Europa.

Lisboa serviu apenas como ponto de partida para uma carreira internacional que, ao longo da década de 60 os tornaria conhecidos na Europa, em África, e mesmo na América Latina e no Japão. Os primeiros discos gravados em Lisboa constituiram êxito imediato, a que se seguiram variadas exibições na rádio, na televisão e em diversas casas de espectáculos. Entre 1960 e 1963 efectuaram várias digressões na Europa, nomeadamente em Espanha (onde a Embaixada de Portugal lhes atribuiu a Medalha de Mérito), França, Suécia (onde a principal actuação foi no «Burns», em Estocolmo, com Eartha Kitt) e Finlândia, além de Angola e Moçambique. Após a gravação do álbum «Mulowa África», estrearam-se em 1965 no palco do Olympia, em Paris. Em 1966 - enquanto em Lisboa lhes era atribuído o Prémio da Imprensa - actuaram na Salle Garnier da Ópera de Monte Carlo, especialmente para os Príncipes do Mónaco, durante as comemorações do IV centenário daquele principado, e foram filmados em Paris para o programa televisivo «Les Argonauts». Em 1967 actuaram no Olympia durante três semanas em Maio e três semanas em Outubro, e participaram em vários espectáculos nas televisões europeias. Foram então convidados a actuar no II Festival Internacional de Música Pop do Rio de Janeiro, onde acabaram galardoados com a Medalha de Ouro, fazendo depois vários recitais no Teatro Cecília Meireles e no Canecão. No mesmo ano - aquele em que um dos ritmos da moda parisiense era a «kwela» lançada pelo Duo Ouro Negro - foram uma das grandes atracções internacionais convidadas a participarem no «Rendez-Vous avec Danny Kaye», um espectáculo de comemoração do 20º aniversário da UNICEF, transmitido em directo do Alhambra, em Paris, para mais de 200 milhões de telespectadores.

A partir de Paris ganharam o Canadá em 1968, com actuações em Montréal, no Teatro Maison Neuve, sendo os recitais acompanhados por excelentes críticas na imprensa. Foram assim convidados a actuar na gala de Abertura do MIDEM (então na sua terceira edição), e daí partiram para concertos em Bruxelas (Teatro Ancien Belgique), Liége e Antuérpia. Actuaram no programa «Europa 1», inaugurando um novo canal televisivo a cores em Bremen, Alemanha. Participaram também no Festival de Split, Jugoslávia, que foi transmitido em directo pela Eurovisão e Intervisão. Nesse mesmo ano, culminando uma intensa mas casuística colaboração com a RTP em programas de variedades, o Duo Ouro Negro concebeu e apresentou uma produção televisiva original, «A Rua d’Eliza», uma opereta africana com música, texto, coreografia e direcção de cena assinadas por Raul e Milo. O programa seria depois seleccionado para representar a televisão portuguesa no Festival de Milão. Antes de 1968 chegar ao seu termo, o Duo foi ainda aos Estados Unidos pela primeira vez: actuaram em Nova Iorque e em Chicago, e assinaram um contrato de representação com a Columbia Artists Management, preparando uma futura e mais intensa deslocação nos EUA.

Em 1969, na Argentina, fizeram dois recitais no Teatro Maipu, em Buenos Aires, gravaram quatro espectáculos televisivos e ainda o LP «Ouro Negro Latino», que em Portugal foi editado com o título «Sob o Signo de Yemanjá». O disco inclui a canção «El Fuego Compartido», composta para um grupo de estudantes argentinos, e também alguns trechos de Ataualpa Yupanki. Regressaram à Europa e a África para novas digressões, antes de, em Nova Iorque, actuarem no Waldorf Astoria.

Foi apenas em 1970 que consumaram a sua almejada digressão norte-americana. A 16 de Janeiro desse ano, a revista «Nova Antena» publicava uma reportagem da conferência de imprensa dos cantores no aeroporto de Lisboa, de partida para dois meses de digressão no Canadá e Estados Unidos. O empresário do grupo, Carlos Robalo, dizia aos repórteres presentes que aquilo que iriam ganhar era «O suficiente para não pensarmos mais em contratos em Portugal». Fariam 43 concertos em universidades e teatros de 37 estados diferentes, entre os quais o teatro da Metro Goldwyn Mayer, em Hollywood e Las Vegas. Após nova digressão por Angola e Moçambique - e uma noite de música africana durante o primeiro teste do Festival de Vilar de Mouros (que teria a sua grande vez em 1971) - seguiu-se a primeira actuação do Duo Ouro Negro no Japão, em Osaka, durante a Expo-70, com dois espectáculos especialmente concebidos para o Osaka Hall, a sala maior do recinto.

E de facto - quase confirmando as previsões de Carlos Robalo - nos anos seguintes a carreira do grupo desenvolver-se-ia principalmente fora de Portugal Continental - uma longa estadia no Oriente, ao longo da qual foram editados vários discos do Duo no Japão, entre os quais o LP «O Espectáculo é Ouro Negro»; concertos em Angola, no Brasil e em Paris. A digressão de lançamento do álbum «Epopeia» foi lançada em Angola e na Austrália. Actuaram no Festival Mundial de Televisão em Knock Lezut, na Bélgica. Em Lisboa, o espectáculo «Blackground» recebeu novamente o Prémio da Imprensa, e o grupo manifestou a sua intenção de abandonar a criação de canções fúteis como «Maria Rita» e «Silvie» para se empenharem essencialmente na divulgação do folclore angolano. Haviam prosperado nos negócios, e tornaram-se sócios de uma empresa mineira em Angola, de que Milo era o presidente da administração. Raul descobrira entretanto o interesse pela pintura, tendo feito a sua primeira exposição em Lisboa, em 1973.

Em Fevereiro de 1974, entrevistado por Regina Louro para a revista «Flama», Milo apontava, com algum sarcasmo, algumas razões para há muito tempo não actuarem em Portugal: «Quais são os artistas portugueses que têm actuado aqui? A verdade é que não há um sítio, uma casa de music-hall para cantarmos. Os teatros têm os seus elencos, os cinemas o que querem é vender filmes, a televisão contrata como vedetas cançonetistas que lá fora ficam num plano inferior a nós. Ao artista português mais não resta do que esperar pelo Verão para ir a feiras, festas na província, ou a um ou outro casino nas estâncias balneares. Fora desse período está condenado a uma carreira internacional». Após a Revolução, a carreira do grupo prosseguiu, com um natural incremento de extroversão e libertarismo psicadélico. Nesse ano compuseram o tema «Baile dos Trovadores» para o festival RTP da Canção, interpretado por Rita Olivais. Em 1975 fizeram novas digressões nos EUA e na Europa, tendo apresentado na Alemanha o espectáculo «Blackground», com transmissão pela Eurovisão. Em 1976, nova digressão nos Estados Unidos, a que se seguiram três concertos no Festival de Perth, na Austrália, e uma reaparição no Olympia de Paris para um concerto único, do qual resultou um álbum gravado ao vivo.

A partir do final dessa década, a carreira do Duo Ouro Negro assumiria um ritmo mais calmo e uma maior concentração no trabalho de estúdio, de que resultaram álbuns como «Lindeza» (1978), o duplo álbum «Blackground» (1980), «Aos Nossos Amigos» (1984) e «África Latina» (1986). Pelo meio fizeram algumas grandes produções em palco, como o espectáculo «Império de Iemanjá», apresentado ao vivo no Teatro da Trindade em 1981 com um elenco que incluía 23 elementos, entre cantores, músicos e bailarinos. A morte de Milo, no final dos anos 80, encerraria a carreira do Duo Ouro Negro. Raul Indipwo encetou uma carreira a solo mas, após a criação da Fundação Ouro Negro, tem actuado essencialmente em saraus e espectáculos de benemerência.


© Jorge P. Pires (11Fev1997)

Raul Indipwo 1933-2006 (1)





Já mal me lembrava de ter visto na televisão, há muitos, muitos anos atrás, o Duo Ouro Negro na «Rua de Eliza» quando, em finais do século passado, tive o grato prazer de ser convidado para almoçar com o Raul Indipwo em sua casa. Recordo: um excelente peixe assado, a descoberta dos benefícios da limonada com gengibre, e, sobretudo, uma memorável tarde de conversa, ao longo da qual, após me ter transportado de sala em sala no seu labiríntico lar, ele passou em revista a sublime odisseia do Duo Ouro Negro. Pasmei tanto que, contrariando um hábito de anos, não cheguei a gravar a mínima declaração. Recordo também: a casa do Raul era um pequeno mas permanente centro de artes e de amizades. Nessa tarde, e em dependências distintas, estavam lá a ensaiar duas bandas - a de Tó Neto («conheço-o desde miúdo, era amigo do pai dele») e os Ciganos d'Ouro, ainda com Pedro Jóia - que visitámos antes de o Raul me mostrar os seus quadros e o belíssimo disco que publicara um ano antes, perante o total silêncio da imprensa.

Desde então encontrámo-nos algumas vezes, em eventos públicos, onde a figura alva do cantor/pintor continuava a irradiar simpatias e empatias. Nunca soube da sua doença; soube agora do seu falecimento, pouco depois de haver recuperado aquela receita da limonada com gengibre (por agora, resta um pouco no frigorífico...).

Enquanto procuro o resto das minhas notas sobre o Duo Ouro Negro (eu sei que as tenho), republico aqui o que escrevi há sete anos sobre a edição do duplo CD Kurikutela, uma compilação dos grandes êxitos do grupo que, também essa, não mereceu grande atenção. A bem dizer, tirando este meu artigo (à época publicado no Expresso), não conheço mais nenhum. Se acharem que estou errado, agradeço que me deixem um comentário no espaço reservado para o efeito.

Recordo ainda: o Raul sabia que aquela história merecia ser contada de maneira condigna, e tinha a esperança de que fosse o José Eduardo Agualusa a encarregar-se de o fazer. Naquela tarde achei que isso era uma excelente ideia. Hoje penso o mesmo.


UMA MIRAGEM

DUO OURO NEGRO
KURIKUTELA – 40 ANOS, 40 ÊXITOS
Duplo CD EMI-Valentim de Carvalho, 1998


Houve um tempo, um tempo breve, em que pareceu que a música popular portuguesa podia ser assim: uma coisa intercontinental, afro-europeia e euro-africana, que pregava um estilo de vida dominado pela elegância e a alegria; atenta às mudanças do mundo e a cada uma das novas tendências internacionais; ecuménica, capaz de acolher no seu seio a memória do antigo reino dos Kwaniamas enquanto gerava luminosas versões de canções dos Beatles cantadas em português e acotovelava as grandes estrelas da época, como Eartha Kitt, Peter Ustinov, Maria Callas, Charles Aznavour ou Gina Lolobrigida. Houve um tempo em que o Duo Ouro Negro, que nasceu no sul de Angola na segunda metade da década de 50, de lá saíu como uma estrela cadente, para fazer escala em Lisboa antes de partir em direcção a outras e mais vibrantes constelações. Houve um tempo em que pareceu que Angola ia ser assim.

Sendo originalmente um trio, foi já como duo que Raul Indipwo e Milo MacMahon - então conhecidos ainda com os seus nomes lusitanos, Raul Aires Peres e Emílio Pereira – se tornaram conhecidos graças às suas espantosas harmonias vocais e a um domínio exímio da guitarra. A princípio projectavam apresentar um elenco do folclore angolano e das suas várias etnias e línguas. Mas a canção que foram estrear ao Cine-Teatro Restauração, em Luanda, e que se tornou o seu primeiro grande êxito, já havia excedido esses limites. No seu registo impressionista e misterioso, «Kurikutela», cujo nome significa «comboio» e celebra o veículo de ferro onde «Toda a gente leva pressa/ de chegar à sua terra/ Estão os parentes à espera» ainda hoje se dá a ouvir como um caso à parte.

Após o êxito conseguido na capital angolana chegam a Lisboa em 1959 pela mão do empresário cinematográfico Ribeiro Belga e, apesar da concorrência em voga no mundo da canção, conquistam em absoluto o público com actuações no Cinema Roma e no Casino Estoril, gravam três discos (inicialmente acompanhados pelo conjunto de Sivuca, depois pela orquestra de Joaquim Luís Gomes), passam pelos écrãs da RTP (onde nessa época se actuava sempre em directo) e regressam a Angola pouco antes do eclodir da guerra, em 1961. Até 1984, ano do falecimento de Milo, decorrerá então o período efervescente do Duo Ouro Negro, marcado por diversas fases e pela polarização do reportório (como todos, submetido à vigilância da censura prévia) entre os registos pop mais inanes e lustrosos de romantismo radiofónico, e outras canções que, não sendo de intervenção política, serão no mínimo de intervenção ideológica. O próprio ano de 1961, em que publicam «Garota» («...se eu beijar sua boca/ Deixará de ser garota/ Passará a ser mulher») e «Mãe Preta» (uma canção espantosa que fala da escravatura glosando a melodia do «Barco Negro» cantado por Amália) é um bom exemplo deste estado de coisas algo esquizóide: celebrados como verdadeiros ídolos em Angola – e ali impedidos pelo censores de interpretarem em palco parte do seu reportório – a presença mediática que conquistaram na metrópole fez com que aqui fossem olhados como um novo trunfo do regime, a garantia de que, apesar da guerra, a existência de um Portugal pluricontinental, como «muitas raças, um só povo» era um dado indesmentível.

O que não pode ser desmentido, porém, é que o verdadeiro trunfo do Duo sempre foi a perspicácia e a actualidade da sua visão africanista, que também poderemos interpretar como uma fidelidade às origens. E isto apesar dos triunfos internacionais que lhes surgem pela frente logo na primeira metade dos anos 60, quando percorrem o norte da Europa e de lá regressam com versões em português dos Beatles («Agora Vou Ser Feliz», em 1964, com nova letra sobre a melodia de «I Wanna Hold Your Hand») e de Charles Aznavour («La Mamma») - antes ainda das actuações no Olympia parisiense (1965), das galas para os Príncipes do Mónaco (1966), do convite para o primeiro grande espectáculo televisivo da UNICEF e das primeiras actuações no Rio de Janeiro (1967). Estas últimas motivaram aliás nova explosão criativa, de início patente em temas como «Quando Cheguei ao Brasil»: «Minha terra era Cabinda/ No Maiombe eu nasci/ Meu cantar era marimba/ Antes de vir para aqui// Quando cheguei ao Brasil/ Sem a minha liberdade/ Quando cheguei ao Brasil/ Tudo em mim era saudade». Era a celebração da diáspora africana, mas também o início do período afro-latino, que ao longo dos anos daria origem a temas como o espantoso «Moamba, Banana e Cola» (1969, com a orquestra de Jorge Leone), «Iemanjá» (1971) ou o encíclico «África Latina» (1979). Comparativamente, a longa digressão pelo Extremo Oriente – a que o Duo se remete na primeira metade dos anos 70, após a sua exibição na Expo de Tóquio – não parece ter deixado grandes marcas no reportório que praticavam.

Para a escala a que estamos habituados, é uma história imensamente rica e extremamente invulgar a que se conta nos 40 êxitos reunidos neste disco – pronto há um ano, mas só agora colocado à venda. Mais do que a miragem do que o nosso passado comum poderia ter sido, é a história de uma miragem de futuro, também ela invulgar, e que pode sintetizar-se, afinal, em breves linhas: «Sou da África Latina/ Sou do século 21/ Nossa gente está por cima/ Todos juntos somos um». É a grande vantagem das canções.

© Jorge P. Pires, 1999