18.6.06

Fábula


Tem a mentida Fortuna muitos queixosos e nenhum agradecido. Chega este descontentamento até às bestas, mas a quem melhor? O mais queixoso de todas é o mais simples. Ia-se este queixando de corrilho em corrilho, e achava não só compaixão, mas aplauso, especialmente no vulgo.

Um dia, pois, aconselhado de muitos e acompanhado de nenhum, dizem que se apresentou na audiência geral do soberano Júpiter. Aqui, profundamente humilde (que o é de agradecer a um néscio), e outorgada a inestimável licença de ser escutado, pronunciou mal esta pior traçada arenga:

«Integérrimo Júpiter, que justiceiro e não vingador te desejo: Aqui tens ante tua majestosa presença, o mais infeliz, sobre ignorante, dos brutos, solicitando não tanto a vingança de meus agravos quanto o remédio de minhas desditas. Como passa, oh Númen eterno!, tua inteireza pela impiedade da Fortuna, só para mim cega, tirana e até madrasta, já que pela natureza me fez o mais simples dos animais, que é dizer quanto se pode? Por quê há-de esta cruel, a tanta carga, ajuntar a sobrecarga de desditado, violando o uso e atropelando o costume? Me faz ser néscio e viver descontente. Persegue a inocência e favorece a malícia: o soberbo Leão triunfa; o Tigre cruel vive; a Raposa, que a todos engana, de todos se ri; o voraz Lobo passa. Eu só, que a ninguém faço mal, de todos o recebo. Como pouco, trabalho muito; nada do pão, tudo do pau. Traz-me desalinhado, e eu, que me sou feio, não posso aparecer entre gentes, e sirvo de acarrear vilões, que é o que mais sinto.»

Comoveu grandemente esta lastimosa proclamação a todos os circunstantes. Só Júpiter severo, que não se imuta assim vulgarmente, alargou a mão sobre que havia estado, não tanto recostado, quanto reservando para a outra parte aquele ouvido: fez ademane que chamassem para dar seu descargo à Fortuna.

Partiram em busca dela muitos soldados, estudantes e pretendentes; advieram por muitas partes e em nenhuma a achavam. Perguntavam a uns e a outros, e nenhum sabia dar razão. Entraram na casa do poderoso Mando, e era tanta a confusão e a pressa com que todos, sem discorrer, se moviam, que não acharam quem lhes respondesse, nem até os escutasse, ainda que toparam com muitos. Discorreram eles que sem dúvida não devia de estar entre tanto desassossego, e não se enganaram. Passaram à casa da Riqueza, e aqui lhes disse o Cuidado que havia estado, mas mui de passagem, não mais senão para encomendar alguns molhos de espinhos e uns taleigões de sovelas. Entraram na quinta da Formosura, que está mui próxima do sexto, para pagá-lo pelas setenas; toparam com a Necedade, e, sem perguntar mais, passaram à da Sabedoria; respondeu-lhes a Pobreza que tão pouco estava ali, porém que de dia a dia a aguardavam.

Só lhes restava já outra casa, que estava sozinha à direita aceira. Chamaram, por estar mui cerrada, e saiu a responder-lhes uma tão formosa donzela, que creram ser alguma das Três Graças, e assim, lhe perguntaram qual era. Respondeu com notável agrado que era a Virtude. Nisto, saía já de lá dentro, e do mais interior, a Fortuna, mui risonha. Intimaram-lhe o mandato e obedeceu ela como sucede, voando às cegas.

Chegou mui reverente ao sacro trono, e todos os do cortejo lhe fizeram muitas cortesias, e até salemas, por recambiá-las. «Que é isto, ó Fortuna! – disse Júpiter – que cada dia hão-de subir a mim as queixas de teu proceder? Bem vejo quão dificultoso é o assunto de contentar, quanto mais a muitos, e a todos impossível. Também me consta que aos mais lhes vais mal porque lhes vais bem, e em lugar de agradecerem o muito que lhes sobra, se queixam de qualquer pouco que lhes falte. É abuso entre os homens nunca pôr os olhos no saco das desditas dos outros, senão no das felicidades, e ao contrário em si mesmos; miram o luzimento do ouro de uma coroa, mas não o peso ou o pesar. Por tanto, eu nunca faço caso de suas queixas, até agora; que as deste, de todas as maneiras infeliz, trazem alguma aparência.»

Mirou-o a Fortuna de revés; ia a sorrir-se, mas, advertindo aonde estava, mediu-se, e, mui recomposta, disse: «Supremo Júpiter, uma palavra só quero que seja meu descargo, e seja esta: se ele é um asno, de quem se queixa?» Foi mui rida por todos a resposta, e pelo próprio Jove aplaudida, e em confirmação dela e ensinança do néscio acusador, mais que consolo, lhe disse:

«Infeliz bruto, nunca vós fôreis tão desgraçado se fôreis mais avisado. Andai e procurai ser de hoje em diante desperto como o Leão, prudente como o Elefante, astuto como a Raposa e cauto como o Lobo. Disponde bem dos meios, e conseguireis vossos intentos; e desenganem-se todos os mortais – disse, alçando a voz – que não há mais dita nem mais desdita que prudência ou imprudência!»


(Capítulo XXIII de «O Discreto», de Baltazar Gracián (1646), em tradução, prólogo e notas de Jorge P. Pires, ed. Frenesi, Lisboa, 2005)

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